I'll be your mirror
"A meta não é a preocupação com a reconstituição de um fato anedótico, mas a constituição de um fato pictórico."1 O argumento de Georges Braque (1882-1963), escrito no emblemático ano de 1917 em Pensamentos e Reflexões sobre a Arte, ganha atualidade ao encontrarmos o frescor de uma nova obra nessa linguagem, como a de Antonio Lee.
Os fatos pictóricos produzidos com regularidade pelo artista paulistano se assentam, realçadamente, sob o espírito da colagem. Tal procedimento se efetiva por meio da pintura, e não por outros meios pelos quais poderia enveredar, como a assemblage, a fotografia, o vídeo, e, ao mesmo tempo, discretamente se aproxima de estratégias outras para além do pincel, da paleta e da tinta.
Em Velocity vs. Viscosity, a primeira individual em São Paulo, Lee altera substancialmente a tônica de seu discurso visual. Se antes ele chamara atenção por conta de figuras algo desfeitas, em cenas que mesclavam o prosaico ao inusual, num cromatismo de tons baixos e pouco ostensivos, agora é clara uma mudança.
Dispostos nos chassis de variadas escalas, fragmentos se espalham por configurações aparentemente menos organizadas, de cores, formas, volumes, texturas e temperaturas mais intensos. Os fatos pictóricos destacados pelo mestre cubista hoje continuam a fazer sentido em Lee pelas fecundas relações que criam entre si, num aprofundamento do que podemos intitular de assuntos pictóricos.
A mistura de técnicas e materiais - o gesto ágil do spray, a permanência e a densidade do óleo, o negro traço que evoca o grafite do desenho, a maleabilidade da acrílica, por exemplo - cria panoramas com acúmulo de elementos que, embora haja espaço para o acidental e, a priori, 'gritem' mais, requerem verdadeiramente muito labor em cada composição.
Ao mesmo tempo, se nos remetermos, nesse campo, a nomes como Jonathan Lasker e Albert Oehlen, vêm referências menos diretas - a fotomontagem política de John Heartfield (1891-1968), o audiovisual de citações genialmente montado por Godard, a dissonância ruidosa do My Bloody Valentine, e, voltando a Braque, trabalhos como Le Guéridon (1911).
Pois o que une tão distintas proposições é uma estratégia fragmentária, que recusa leituras absolutas, sentidos unívocos, abordagens maciças. A sedução plástica de Lee tem certamente dados especulares. Em seus quadros, observamos vividamente o frenesi maximizado de quase tudo o que podemos imaginar. "(...) Já não compreendemos o atual dilúvio criativo que inunda o globo de imagens, sons e palavras, nem sabemos lidar com ele, dilúvio que quase certamente se tornará incontrolável tanto no espaço como no ciberespaço" 2, alertara Hobsbawm.
E é do atributo fotográfico, de sua noção de índice, que o jovem artista extrai relevante contribuição. Se na fase figurativa as found photographs da rede eram um importante eixo - que, depois do trabalho de ateliê, ganhariam características muito próprias da pintura - , agora Lee, por meio desse bric-à-brac de padrões e embates, parece recolher cacos do belo caos do mundo e, agrupando, justapondo e sobrepondo, é autor de novos estados e corpos. Um artista como editor. "O 'destroço' - o torso, o corpo despedaçado, o fragmento corporal - de um símbolo sob a 'sublime violência do verdadeiro': há nessa figura essencialmente 'crítica' toda uma filosofia do traço, do vestígio" 3, escreve o certeiro Didi-Huberman. Assim, por meio de estratagemas contemporâneos, Antonio Lee - ao lado de emergentes artistas como Luiza Gottschalk e Diana Motta, para ficarmos apenas em São Paulo - reinventa, diariamente e com habilidade, fatos, assuntos, investigações, abalos e desdobramentos pictóricos. E isso deve ser saudado.
Mario Gioia
1. CHIPP, H.B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 265
2. HOBSBAWM, Eric. Tempos Fraturados. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 15
3. DIDI-HUBERMAN, Georges. O Que Vemos, O Que Nos Olha. São Paulo, 34, 2010, p. 174