Os filhos da guerra
Uma noite marcante em Paris é como todas as tardes na Síria ou no Iraque. Qual a diferença para quem ama alguém que estava em uma boate em Paris e encontrou um homem bomba ou uma pessoa que estava em uma mesquita em Raqqae levou uma bomba de drone? A dor não é relativa, ela é absoluta. A guerra dói para todos. Por que aceitamos com naturalidade se for no Oriente Médio e com ultraje se for na Cidade Luz? O fotógrafo brasileiro Gabriel Chaim saiu a campo com uma vigorosa coragem em busca da imagem daqueles que são os filhos da guerra na Síria, os que perderam tudo, casa, família, passado, destino e futuro. Esta exposição é o retrato dessas pessoas, vítimas tão inocentes desse conflito como as de Paris. A imagem deles, porém, é rara, difusa, perdida.
São Paulo é uma cidade que contou com uma enorme contribuição de imigrantes sírios e libaneses para a sua construção. Os sírios são nossos parentes, amigos, colegas. Os sírios de lá não tiveram o mesmo destino dos sírios que migraram para cá. Nesse momento histórico, a maior ameaça que vivemos não é o terrorismo, mas sim o medo. O medo provoca uma reação em cadeia com efeitos ainda mais nocivos do que o terrorismo. O medo é a principal arma para criar uma situação em que sua antecipação arma os espíritos e fragiliza as pessoas. Todos passam a ser vítimas permanentes e não mais circunstanciais. O medo nos priva do nosso maior valor e pilar de nossa sociedade: a liberdade. É um sentimento que também nos faz esquecer da fraternidade com que construímos os contextos de paz. O medo empobrece a alma e a cultura e nos faz defensivos.
Gabriel Chaim é um exemplo de quem enfrentou esse medo em busca de revelar o outro lado dessa história. Parece fácil agir jogando bombas sobre a Síria. Explodir tudo por cima é o caminho higiênico para não encarar o horror de uma guerra e seus consequentes traumas. Mas uma guerra não se ganha pelo ar. Uma guerra não se ganha aniquilando uma população. Cada bomba em Aleppo tem o contrapeso da força de imigrantes chegando à Europa. Cada família destruída gera um órfão disposto a se vingar. Esse retrato do lado mudo do confronto na Síria é o que queremos mostrar nessa exposição. O conflito que já evolui para uma situação de guerra ganhou uma conotação diferente dessa vez. A guerra da mídia está sendo completamente dominada pela imagem produzida direta ou indiretamente pelo EI (Estado Islâmico). Nenhum dos outros elementos desse conflito conseguem produzir uma imagem para ela. Essa ausência de imagem que deem a real dimensão do que está acontecendo é uma das dificuldades para entender o cenário.
A fotografia de Gabriel Chaim busca humanizar o que acontece em terra e abrir um canal para a identificação com o outro. Ele enquadra o contexto, o personagem e a situação e os articula em fotos que resgatam a dignidade e o sentimento de cada indivíduo. Ele nos lembra que não são populações, são pessoas que foram abruptamente deslocadas de sua história para uma situação abissal. Chaim captura ainda a intenção e a dor de cada um. É duro admitir que a guerra tem sua plasticidade e está no imaginário como uma das grandes inspirações da arte. As fotos às vezes são posadas como retratos singulares, às vezes são flagrantes do desejo de liberdade. A liberdade é uma coisa que não se explica, mas que só se entende mesmo o que é quando a perdemos. Precisamos acordar para o fato de que essa guerra está tirando a liberdade de todos nós.
Marcello Dantas