O que fotografamos, o que nos fotografa: vaga-lume da arte
"Ei, essa lata, você a está vendo porque olha para ela, pois ela, por sua vez não precisa ver você para olhá-lo." (Jacques Lacan, Seminário 16)
A fotografia é uma dúvida. A fotografia é um reflexo. A fotografia é um instinto (de preservação?). O cultivo da natureza da arte por parte do Jardineiro André Feliciano culmina, na presente exposição, em um conjunto de trabalhos menos sobre o Florescimento e mais sobre a fotografia. Mais especificamente, sobre o que aconteceu com esta linguagem desde o Neo-Pós-Pós, manifesto que o Jardineiro escreveu em 2001, quando era Moderno. A fotografia espontânea deu lugar à fotografia simultânea e quase obrigatória, tirada por um ato de reflexo tão naturalizado quanto o ato de franzir as sobrancelhas em um ambiente muito iluminado.
O jardim cultivado para apresentar na Zipper Galeria é diurno. Mas é uma imagem congelada de jardim também, com que o visitante se depara primeiro de longe, como a vislumbrar uma representação de natureza dentro do mais tradicional cânone de "paisagem". De longe, estamos perante um tableau prestes a virar pintura, ou fotografia. De perto, vivenciamos a inversão lacaniana exemplificada na parábola do pescador que vê uma lata de sardinha boiando na água: não vemos algo apenas, também somos observados pelo objeto que nos devolve nosso olhar.
A natureza fotográfica mudou radicalmente nestes onze anos: o Jardineiro escreveu seu manifesto seis meses antes do 11 de Setembro, evento que marca o ápice - e o começo da ruína - da política como imagem, como ficção, como espetáculo. A Al Qaeda tirou partido da linguagem espetacular de Hollywood para planejar seu ataque à cultura liberal-imperialista do Ocidente, mas fundou ali uma dúvida generalizada, em relação à política, em relação à imagem, em relação à realidade e à ficção ao mesmo tempo.
Uma nova subjetividade fotográfica foi forjada naquele evento, no momento mesmo em que um segundo avião atingia o World Trade Center e as emissoras de televisão, que transmitiam ao vivo, incluíam uma legenda onde se lia "estas imagens são reais". A capacidade de discernir entre ficção e realidade já estava embotada àquela altura. Mas onze anos depois, com a aceleração e ubiquidade da vida mediada (hoje passamos o tempo inteiro conectados às redes digitais - internet, banco, twitters e afins), sobretudo para as gerações que já nascem imersas neste contexto, a dúvida é uma constante a nos acompanhar.
Passamos a duvidar de toda e qualquer imagem fotográfica, a ponto de a artista Nan Goldin, conhecida pela radicalidade documental de suas imagens, afirmar que a revolução tecnológica deixou seu trabalho sem lugar, porque ninguém mais acredita estar diante de algo real quando vê suas fotos. Em um mundo em que toda imagem é construída ou manipulada, os frutos do cultivo do Jardineiro de Arte vêm devolver ao sujeito duvidante o olhar desconfiado que este dirige às coisas. Estas flores e estes animais também me espreitam, também me fotografam: a imagem resultante deste olhar é real?
Os macacos-fotógrafos podem ser vistos como metáfora das pessoas, mimetizando o comportamento dos estranhos seres que os fotografam alucinadamente em um zoológico ou expedição turística. Mas, para pensar com Lacan, o antropomorfismo não está presente aqui como significação mimética trivial, mas como noção que visa antes um nível metapsicológico de inteligibilidade que nos aproxima do paradigma da formação do inconsciente, como nos ensina Georges Didi-Huberman. Esta árvore de bronze onde animais se equilibram para nos fotografar e este jardim fotográfico não "representam" coisa alguma; eles nos apresentam algo novo. Um novo inconsciente coletivo - e fotográfico - se anuncia.
Juliana Monachesi