Para além da dimensão material do objeto, espera-se que uma obra de arte carregue um substrato conceitual, um conteúdo imaterial que nos eleve do plano dos objetos, expectativa que é herança da noção de objeto de arte como objeto de culto, como algo que serve de ponte entre o mundo fenomênico e um suposto mundo das ideias. A primeira individual de Ricardo Rendon no Brasil confronta essa demanda por transcendência impingida à obra de arte justamente enfatizando na matéria a presença do vazio. Deparamo-nos nesta exposição com um acúmulo de vazios.
"Há metafísica bastante em não pensar em nada", escreveu Alberto Caeiro. E Rendon explicita a metafísica das coisas nas coisas mesmas, com seus vazios que não saem deste mundo, não buscam explicações em nada além do que se vê e toca, nada além da maciez da lã do feltro, tecido que nas obras de Rendon parece absorver o som das palavras do guardador de rebanhos. É na obra, no que se vê e toca, e em seu processo de feitura, que fica o pensamento gerado pela obra, não fora dela.
Como diz o título da exposição, escolhido pelo artista, o vazio é contido tanto por estar sob controle, aceito como parte da existência, como por ser conteúdo da exposição. O que vemos na montagem na Zipper galeria é o vazio contido em cada peça, a ausência de pedaços do tecido moldando a obra, o vazio ativo, desenhando a forma das coisas, como um poder imanente, gerador das coisas que aqui existem, e só existem graças ao vazio.
Há uma profusão de vazios espalhados pela galeria, alguns vazios regularmente estabelecidos no feltro, outros abrindo passagem para a luz atravessar a madeira, depois vazios que recortam curvas graciosas no que seria uma linha reta monótona, vazios que não precisam ser preenchidos, matéria que fica mais maleável graças aos vazios, e que passa a aceitar dobras de muitos tipos, revelando sua multiplicidade em potencial, ativada pelo vazio. Nenhuma obra tenta preencher o vazio, nenhuma obra quer reencaixar as rodelas de matéria caídas no chão. O que interessa é criação do vazio e pelo vazio, construção que advém do corte. Colmatar o vazio seria matar a obra. Aceitá-lo, é estabelecer uma relação respeitosa com a matéria, cultuando os mistérios daquilo que se vê e toca, entendendo que viver é cultuar a vida como ela se apresenta:
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo (...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. [1]
Daí, cada obra de Ricardo Rendon funcionar como estímulo aos sentidos -- com a maciez silenciosa do feltro e formas que deleitam pelo agrado que o ornamento faz aos olhos--, e também como máquina de pensamento sobre as ausências que moldam tudo o que vive. Cada uma dessas formas só existe porque se beneficia de seus vazios. Sem eles, seriam panos retangulares pesados e sem molejo, placas de madeira que barram a passagem da luz e do ar, caixas fechadas em si mesmas. Há conteúdo imaterial bastante em não desmerecer a matéria.
Paula Braga, 2013
[1] Fernando Pessoa, "Há metafísica bastante em não pensar em nada", em O Guardador de Rebanhos - Poema V"