Pedro Varela

19 Outubro - 16 Novembro 2013

A noite escura e mais eu

 

Esta exposição de Pedro Varela começa à noite. Noite alta, noite fechada. É neste momento da hora mais escura que somos convidados a entrar em sua obra mais recente.  Com este conjunto de trabalhos que o visitante vê logo ao entrar na galeria Zipper, o artista dá um passo mais firme na direção da pintura. Faz isso sem medo. Ou, o que talvez seja ainda melhor, plasmando este e outros medos do desconhecido no processo de realização de cada tela. Há um grande contraste com a atmosfera extremamente colorida de alguns de seus trabalhos anteriores, tanto as aquarelas quanto as colagens feitas com adesivo, em que a influência tropical era clara, intensa, solar. Agora, continuamos nos trópicos, mas estamos sob a luz feminina, fugidia e indireta da lua. 

 

As pinturas deste início da mostra, mergulhadas no índigo, formam massas noturnas que têm grande impacto à distância. E que vão se revelando em diversos tons de azul à medida que chegamos mais perto. A tela escolhida para abrir a montagem destaca esta visão na escuridão, na qual os seres e objetos se revelam conforme o olho se acostuma à falta de luz.  Entramos na floresta, rumo ao desconhecido. É interessante que Varela tenha escolhido justamente a mata fechada para iniciar esta mostra noturna. Nos contos clássicos infantis, sempre há uma floresta, sinônimo do perigo, do mistério e do amadurecimento dos personagens. Chapeuzinho Vermelho, o Pequeno Polegar, Branca de Neve e os irmãos João e Maria passaram pela prova de fogo da floresta. Pedro também passa, nos faz passar, e logo no início da caminha percebemos que ultrapassamos a clareira de mãos dadas com Goya e Bosch. Encontramos jacarés, cobras e animais um tanto fantásticos estão à espreita e vão se desenhando no primeiro plano e se perdendo no fundo de azuis.

 

A viagem até as histórias infantis não se faz ao acaso: a ideia de narrativa, de um fluxo de imagens que se dá quase como o virar de páginas de um livro, sempre esteve presente na trajetória do artista. O uso deste verbo, "desenhar", também não é aleatório. É interessante perceber como Varela enfrenta o desafio de aumentar a voltagem da carga pictórica de seus trabalhos sem, no entanto, abandonar a perspectiva do desenho. É como se desbravasse a floresta e enfrentasse a noite de uma nova etapa tendo ao seu lado sua história e o patrimônio acumulado em anos de atividade artística. A escolha do azul também é salutar. É o azul da caneta esferográfica, tantas vezes usado por ele para desenhar, também o azul com que transforma a porta de vidro que dá para a edícula da Zipper em um jardim de transparências. Nestas telas, o desenho se faz presente em figuras que se assemelham a aparições ou delírios, sonhos ou pesadelos desta noite de verão. São esboços que saltam do fundo pictórico, em meio a montanhas que apenas entrevemos, lapsos de luminosidade no meio desta vegetação no breu.

 

Percorremos as pinturas de índigo e chegamos a uma fase transitória da montagem, em que a noite escura vira madrugada. O branco começa a se fazer presente em uma tela na passagem entre os dois espaços do grande salão da Zipper.  Nesta mistura de Vanitas com Carmen Miranda, Varela reafirma suas veias latino-americanas, trabalhadas sempre de forma desavergonhada e profunda. Os abacaxis, flores e abacates que eram vistos na noite escura ficam aqui mais sinuosos, destacados em suas curvas, que dão vida nova à caveira tchicatchicabum, destacando, como em uma fiesta, o aspecto transitório da morte e da própria pintura.  

 

A chegada do branco e dos primeiros raios de luz faz com que enxerguemos os tons mais escuros da noite azulada sob outras perspectivas. Vemos que é um azul Klein, mergulho no corpo da cor. E um azul Matisse, cor táctil, cor para tocar. Um azul nanquim, carimbo, escrita. Um azul mouro e da África do norte - turquesa para espantar os maus espíritos. As aquarelas da segunda sala nos mostram este azul cada vez mais desenhado no fundo branco e nos fazem voltar às cidades - ora flutuantes, ora submersas - que sempre marcaram o trabalho de Varela. 

 

Nesta mostra, é fácil perceber um paralelo com a obra de dois pintores muito importantes para a história da arte brasileira recente: Luiz Zerbini e Adriana Varejão. Do primeiro, Varela se aproxima através desta sem-vergonhice tropical, este despudor no trato da exuberância, e uma fusão entre dois estatutos importante do fazer pictórico: a natureza morta e a paisagem. Tanto para Zerbini quanto para Varela, é difícil dizer o que é uma coisa e o que é outra.  A vizinhança com Varejão se dá por caminhos enviesados e, por isso mesmo, talvez ainda mais potentes. O azul sobre branco de Varela também deságua, como o de Varejão, na porcelana da Companhia das Índias, elemento que une o Brasil - o berço barroco da arte feita em nossas terras - a Portugal e ao Oriente. Aleijadinho formou seu olhar vendo porcelanas chinesas, que chegavam a Minas Gerais vindas dos postos coloniais portugueses no extremo Oriente.  Não por acaso, seus santos têm olhos puxados e barbas de samurai. Varejão destaca esta encruzilhada em Passagem de Macau a Vila Rica, em que mostra duas paisagens - a da China, a do Brasil - perdidas na mesma névoa. Em outro trabalho, Naufrágio da Companhia das Índias, a artista apresenta o fundo do mar como um mosaico feito de cacos de louça quebrada, fragmentado em vários azuis possíveis. Varela nos oferece sua própria visão, cheia de vigor, para este patrimônio de qualquer brasileiro. Seu azul é marinho, está submerso nestas águas de muitos tempos e geografias. Seu azul também é celeste, como evidenciam castelos, torres e mirantes que flutuam nas pinceladas aguadas da aquarela.

 

Falei de um azul Matisse e este é um artista fundamental para que se compreenda o terço final da exposição de Varela, em que a galeria chega às nuvens do branco. Um orientalista assumido, Matisse é uma influência latente para os trabalhos feitos com estilete sobre a folha branca, em que cidades surgem em meio uma neblina branca através dos lanhos, pequenas janelas de ausência, criados por Varela no papel.  O trabalho de recorte, que dá corpo tridimensional a ideia de um desenho, também está presente em uma experiência nova, uma série de esculturas cuja base é um papel amassado. Apoiadas neste volume um tanto disforme, caótico, que traz a memória da mão como molde, nascem naturezas-mortas/paisagens, que estabelecem um diálogo muito forte com o Vanitas tchicatchicabum já citado.  E fazem clara referência às Droguinhas de Mira Schendel. 

 

É curioso que, em novo trabalho de recorte e colagem com papel branco, Varela tenha chegado à conversa com uma artista que tem grande relação com a filosofia oriental. Em seu trabalho com tipografias e com palavras, Mira lida com a noção zen de que as áreas vazias podem ser um espaço cheio de significados. No seu caso específico, a ideia de que o silêncio - espaço em branco que envolve as palavras - também pode falar. É igualmente interessante que estas "d'après Droguinhas" sejam, a um só tempo, o fecho e a possibilidade de reinício do percurso da mostra. Com os trabalhos brancos de corte e cola, Varela faz com que sua exposição amanheça. Mas o azul do outro lado da sala está ali para nos lembrar: enquanto experimentamos a aurora, outra noite se desenha em algum lugar de nosso mundo. 

 

Um P.S. necessário: Poderia sacar a máxima sobre um "ladrão que rouba ladrão" para falar do título deste texto, retirado de um livro de contos de Lygia Fagundes Telles.  Sua atmosfera melancólica e às vezes soturna se afina bastante com esta exposição. Varela e Lygia têm em comum o fato de, como eu, serem "bons ladrões": a escritora também "roubou" o seu título, que veio do poema Assovio, de Cecília Meireles. É com o início dele que me despeço. Ou me desperto, talvez: "Ninguém abra a sua porta/ para ver que aconteceu:/ saímos de braço dado/ a noite escura e mais eu". 

 

Daniela Name, 2013