Travessias e traduções
“Eu tinha três anos. Meu irmão Miguel, um pouco mais. Embarcamos em Lisboa com destino ao Brasil. Foram 21 dias de viagem. Ou seriam 19? Minha memória me trai.”
M. T.
“O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.”
Fernando Pessoa
“A aventura marinha e a viagem distante são, antes de tudo, aventuras e viagens contadas” – relembra Thais Graciotti citando o filósofo francês Gaston Bachelard. Nos relatos de viagens e travessias reunidos pela artista, realidade e ficção se mesclam todo o tempo. Os viajantes fabulam o distante e seus contos misturam sonhos e desejos.
A partir do mar e do ato de ir de um território a outro atravessando um oceano de incertezas que esta exposição é pensada. Nela, histórias reais e literatura convivem e se cruzam. Histórias heroicas, frustradas, alegres e de dor. Memórias turvas de imigrantes e emigrantes, relatos de refugiados, narrativas de tempestades no oceano, sensações daqueles que viveram entre a terra e o mar, o passado e o futuro, o cartografado e o inusitado.
O viajar pressupõe a ideia de fronteira, o risco geográfico e a relação com o outro. É um fenômeno transitório que implica na transgressão e na comunicação. A viagem é um limiar, uma ponte, uma encruzilhada que conecta geografias, diferentes civilizações, culturas, religiões, raças, ideologias e sistemas políticos. Já a escrita de viagem pode ser vista como um ato de tradução que, portanto, reconhece a diferença entre o local de partida e de chegada e relata a tensão deste “espaço entre” vivenciado pelo viajante.
Nesses escritos há uma tentativa de domesticar o desconhecido e ultrapassar medos. Seja na viagem ou no seu relato, fica claro que a ideia de sobrevivência se aproxima de uma capacidade de reinventar outros mundos e instaurar novos territórios. Nessas travessias, impostas ou por escolha, resultantes de um desejo de ir em busca de um novo mundo ou de uma vida melhor, o risco está sempre presente. A própria etimologia da palavra – que vem do latim, risicare (ou resicare), que significa ousar – demonstra isso. O “risco” surge no contexto das primeiras viagens marítimas, como “perigo oculto do mar”, e passa a ter expressão nos séculos XVI e XVII. A palavra parece ter chegado ao inglês a partir do espanhol ou do português, línguas utilizadas para caracterizar a navegação em mares desconhecidos.
Os relatos, de diferentes origens, chegaram à artista, em sua maioria, em português e inglês – somente alguns deles na língua original. Thais então pediu para que outros imigrantes, refugiados, emigrantes, viajantes nômades, fizessem a tradução dessas falas para sua língua original. Neste exercício, pôde investigar a comunicação entre diferentes línguas e as perdas e novas camadas que surgem nesse processo. A falta de neutralidade do espaço de tradução, atravessado por relações de poder e desejo, é então ressaltado.
A artista opta por materializar essas múltiplas vozes e experiências narradas em placas de vidro com os relatos gravados com sal. As placas, de diferentes tamanhos, espalhadas pelo espaço, retomam sensações trazidas pelo mar e o movimento das águas. A transparência, a reflexão, o horizonte, as barreiras e o risco. Sobrepostas e postas lado a lado, as memórias das trajetórias marítimas, tão díspares, criam uma zona de contato transcultural e atemporal, em que sujeitos anteriormente isolados - geográfica e historicamente - cruzam suas histórias com outros tempos e espaços.
A pluralidade dos textos e a mescla entre ficção, literatura e realidade instauram um território expositivo entre o mar e o livro. A água, em seus diferentes estados, está presente no texto, no vidro, no sal, no ambiente. O sal, cristalizado e fixado no vidro, desenha a história dos viajantes e se modifica de acordo com o clima, escorrendo em dias mais húmidos e enrijecendo em dias secos.
Do viajar, que é uma forma de esparramar-se geograficamente por espaços abertos, resta, seja na literatura ou na narrativa daqueles que viveram a experiência da travessia, a memória gloriosa, romanceada e repleta de lacunas. “Guardo a imagem nebulosa de um homem na piscina e do navio a singrar mar azul. O comandante se chamava Cristo. É mesmo verdade? Ou inventei? Quando cheguei ao porto de Santos, não reconheci meus pais, que não via há mais de seis meses. Isso me contaram depois. Mas nem isso é certo. Outro dia meu pai me disse que não era verdade.”, relata uma das viajantes.
Isabella Lenzi