Quando os monstros envelhecem: Flávia Junqueira

15 Setembro - 15 Outubro 2016

Maravilha monstruosa

 

Onde estariam os monstros anunciados pelo título desta exposição? Muito embora as fotografias e objetos reunidos na mostra não façam referências diretas a essas criaturas, elas podem ser encontradas em espaços que não são apenas do imaginário. Em nossa linguagem, tais personagens servem como metáforas para indicar deformidades de ordem física e moral, para revelar barbáries políticas e atos que acusam uma falta de humanidade. Estudiosos afirmam que os monstros representam um desvio da ordem natural das coisas, uma anomalia, uma forma diferente do mesmo que escapa e rompe a harmonia predominante. Eles seriam uma desmedida, uma desordem que tende à desproporção, ao caos, mas também aquilo que produz surpresa, temor ou maravilhamento.

 

Foi o que os primeiros viajantes, para além das fronteiras do mundo conhecido, muitas vezes encontraram e não souberam de pronto nominar. Ao romper com proporções e simetrias, o monstro se coloca em evidência. A palavra deriva do latim monstrum, coisa incrível, extraordinária, cuja raiz vem de monere, mostrar, indicar, assinalar. Por isso, eles seriam uma classe de mutantes que revelam o desvio e a desproporção como partes da natureza necessárias ao equilíbrio do mundo. Aquilo que normalmente associamos ao feio, ao tenebroso, ao disforme - ou, por outro lado, ao excessivamente belo - seriam também maravilhas, mirabilia, coisas que nos fazem ver o que a constância da ordem oculta.

 

"Como todo produto da fantasia, o monstro resulta de um jogo entre a semelhança e a diferença, já que a semelhança é o que o torna reconhecível e a diferença é o que lhe dá a sua capacidade de significar o desconhecido. Assim um monstro, para sê-lo, deve ter alguma semelhança que nos aproxima e ao mesmo tempo uma diferença que o torna temível"*. É nesse ponto que esta exposição parece encontrar parte do seu sentido. A produção recente de Flávia Junqueira se identifica com a produção anterior da artista, são reconhecíveis pelos seus símbolos e pela sua concepção fotográfica. Mas ao mesmo tempo algo perturba a harmonia desse conjunto. Há uma condição de abandono dos lugares retratados que a artista encontra ou constrói, em contraste com os rastros deixados por seus ocupantes agora invisíveis. A figura da personagem feminina, que aparece numa estranha relação com um boneco de proporções monstruosas, oscila entre a postura de quem domina o anômalo e de quem jaz em estado de choque à sua frente num espaço vazio, num lugar nenhum. 

 

Esse ambiente contrasta com outros lugares fotografados repletos de objetos e representações do mundo animal, mas destituídos da presença humana. "Aqui você deixa o presente e entra no mundo do passado, do amanhã e da fantasia", lê-se numa das placas metálicas que expõe as palavras escritas em relevo. Tal afirmação parece sugerir que a nossa obsessão em viver num tempo seguidamente up to date deverá ser abandonada por uma experiência como espectadores de imagens de uma desolação desconcertante. A própria fotografia se assemelha a uma anomalia pelo estranhamento dos lugares e coisas que nos apresenta como partes do mundo conhecido, mas que parecem, de alguma forma, alterados pela construção escolhida pela artista, pela "magia da técnica naturalizada". 

 

Em um tom ainda mais abissal que o anterior, outra placa reproduz a frase que Dante teria encontrado na entrada de sua jornada pelo inferno. Não estamos, definitivamente, num ambiente de festa. A festa acabou. Os personagens dos contos de fadas e dos paraísos infantis, com seu sorriso indelével, não são mais motivos de graça. A eles foi dado agora o papel de nos acompanhar também na hora da morte, que é a do seu próprio sepultamento. Nossos monstros também envelhecem e, um dia, se vão. Vão mesmo?

 

Mario Ramiro

 

[*] Raúl Doria. ¿Para qué los monstruos? Elementos, N. 22, Vol. 3, 1994, pp. 13-19.

 


 

Na companhia dos monstros

 

De uma hora para outra, a festa esfriou. Os balões murcharam, a música cessou e o pipoqueiro foi embora. Ficaram apenas os monstros da infância, mas até eles já não conseguem assustar. Estão caducos. Envelheceram porque nós também envelhecemos. 

 

Ainda que esses monstros estejam debilitados, eles insistem em permanecer de alguma maneira, o que faz com que Flávia Junqueira aborde lugares, personagens e temores pregressos outra vez. Agora, no entanto, a perspectiva é de uma adulta que se acostumou a viver ao lado dessas assombrações e já não se espanta tanto quanto antes. Para isso, deixa de lado a composição caótica de trabalhos anteriores, recolhe os objetos que a acompanhavam e agora os exibe isolados, desmembrados da pilha de bexigas e brinquedos.

 

Em uma loja, fotografa cabeças de fantasias de desenhos animados. Sorridentes, com a alegria estática que lhes é característica, estão silenciosos aguardando por uma festa que pode não acontecer. O quarto está cheio de brinquedos, mas ninguém está brincando ali. 

 

Da mesma forma, bandeirolas, como aquelas de aniversários infantis, dispostas na entrada da exposição, carregam as frases: “Não consigo respirar direito aqui. Posso sair?”. Aquilo que parece gracioso à primeira vista aponta para algo desalentador em seguida. O registro da escultura que emula a carruagem-abóbora da Cinderela mostra um veículo cujas rodas nunca tocam o chão.

 

Em outras obras, nem é preciso interferir nas referências do passado. Ao documentar a ótica e o consultório dentário que frequentava quando pequena, Flávia escancara espaços funcionais, dirigidos a adultos, mas que se travestem de buffet infantil para amenizar o medo pueril. Hoje, ao olhar locais que a assustavam antes, sobra o sarcasmo da decoração histérica.

 

Sarcasmo que reaparece em imagens de um velório, capturadas na internet, no qual os familiares, vestidos como personagens infantis, carregam o caixão de uma criança. Os monstros já não assustam tanto, são até satirizados. Assim como o Mickey que tenta causar algum espanto à artista, mas a encontra paralisada, com a expressão de choque que beira o desdém.  

 

Há seis anos, Flávia inaugurou esta galeria com uma exposição que fingia ser uma festa. Agora, o cachorro-quente, a serpentina e o pirulito dão lugar a uma mostra que deságua em uma lápide com a inscrição: “Pense como uma festa que um dia foi festa, mas que talvez tenha sido interrompida abruptamente e cujo espaço tenha ficado desabitado e esquecido”.

                             

Daigo Oliva