Improvável: Mario Ramiro

11 Abril - 13 Maio 2017

É suficiente às vezes pensar a arte como expressão de um contexto histórico ou, pelo menos, de um modelo de pensamento, uma ideologia, a visão de mundo de um sujeito. Isso projeta sobre as obras uma legibilidade apaziguadora. As coisas se complicam quando a imagem é tomada como um instrumento de exploração que se contamina da matéria que investiga. Ela assume uma existência impura, impregnada das alteridades que encontra pelo caminho. Aqui, não será suficiente pensar em arte-tecnologia, arte conceitual ou arte transcendental. Não se nomeará tão facilmente os engajamentos e as crenças de Mario Ramiro, quando ele mesmo toma a imagem como espaço de embate entre o que está próximo e o que está distante. 

 

Difícil situar o que seria o lugar próprio de cada coisa: das antigas "novas tecnologias" que continuam se reinventando e provocando surpresa, do ectoplasma que dá contorno claro aos espíritos, dessas mãos que tateiam os ambientes escuros - seja o da caverna, seja o da caixa preta das tecnologias - senão para desvendá-los, ao menos, para colocar-se como sujeito de seus mistérios. O tempo destas imagens também é instável. Tudo aqui trata de um processo de superação (o aufhebung da dialética hegeliana), noção que aponta tanto para a morte quanto para a ressurreição das coisas, para aquilo que, ao deixar de existir, realiza mais plenamente suas potências transformando-se em algo outro.

 

O próximo e o distante estão também na conjunção de técnicas banais e temas transcendentes. Convivem, portanto, um movimento de sagração e outro de profanação. Nessa relação, as imagens retêm o que resta de pensamento mítico na arte, mas desviam-se dos artifícios que visariam sua própria mistificação. Trata-se de não confundir a magia, que está na origem de nossa relação com às imagens, e o fetiche do objeto artístico. Essa foi justamente a operação complexa realizada pelo pensamento de Walter Benjamin, que torna difícil decidir em que medida ele celebra ou lamenta a dissolução da aura artística pelas imagens técnicas. Quando o acesso a uma imagem única e privada se converte numa credencial que quer conservar a distinção entre a elite que as possui e as massas que não a merecem, a reprodutibilidade da fotografia e do cinema pode se converter num instrumento fundamental para a revolução. Mas uma aura autêntica, manifestação rara que permite ao olhar ser tocado pelo tempo, essa "aparição única de algo distante, por mais próximo que esteja", é algo que Benjamin continua a procurar nas imagens. 

 

Essa mesma tensão entre o próximo e o distante explica a sensação de que esta exposição traz algo já histórico, mas que sentimos profundamente como contemporâneo. A noção de "história da arte" aponta para dois sentidos bem distintos. Um mais disciplinar, referente às narrativas acadêmicas que buscam situar cada fenômeno artístico em seu devido lugar do passado. Outro mais insolente, que diz respeito ao modo imprevisível como uma imagem atravessa os tempos. No primeiro caso, o tempo é algo homogêneo e estabilizado: o que aconteceu está dado e disponível à dissecação. No segundo, o tempo é a própria mudança. Em um, a história é lugar de construção de uma erudição e, eventualmente, de alguma nostalgia. Em outro, a história é o caminho pelo qual um gesto arcaico se faz vivo no presente. 

 

Esse tempo instável aparece aqui de modos diversos. Primeiro, parte desta exposição aponta para algum momento da década de 1980, mas que não encontrou uma narrativa historiográfica satisfatória e, por isso mesmo, provoca no olhar a surpresa própria dos fatos ainda não nomeados. Segundo, pensando numa temporalidade mais ampla, o trabalho do artista concilia a razão linear da ciência com o pensamento circular das sociedades antigas, uma conjunção que é própria da era "pós-histórica" denominada por Vilém Flusser, autor com o qual Mario Ramiro tem grande familiaridade. É isso que permite aos fantasmas reaparecer justamente dentro de uma racionalidade moderna que parecia tê-los exorcizado. As imagens técnicas já são ambíguas por si mesmas: antes de serem técnicas, ainda são imagens. Portanto, assombradas pelo pathosque as fez surgir em nossa civilização.

 

Com uma trajetória que dura quase quatro décadas, Ramiro não reivindica para si a condição de artista a ser celebrado. Tendo integrado um dos primeiros coletivos de artistas do país, o 3Nós3, prefere ainda os espaços que podem ser compartilhados. Seu reconhecimento se dá não tanto pela musealização de suas intervenções pioneiras, mas pelo modo como suas pesquisas contínuas reverberam no trabalho de uma nova geração de artistas que tem ajudado a formar. Como na atividade mediúnica, o gesto do artista pesquisador é sempre potencialmente coletivo: encarna um tempo que não é apenas o seu, e se desdobra nos corpos que atravessaram seu caminho.

 

Ronaldo Entler