Estar sob o regime dos dispositivos, este mesmo que nos faz perceber que estamos numa galeria de arte e tudo o mais em que isso implica, é uma condição do jogo de pelo menos parte das exposições de arte contemporânea. Mas tomar consciência disso mobiliza algo vívido em nós?
Quando subiu as escadas você se deparou com uma luz vermelha aquecendo a antessala, quiçá a lembrança de um laboratório de revelação fotográfica. Ao entrar no espaço expositivo, o conjunto de imagens de pessoas olhando para obras de arte também olham para você. Pessoas olhando para obras de arte. E você, olhando para elas, que também se olham entre si. Destreza da artista que aponta sua pesquisa para o que pode ser a construção de um olhar para a arte ao longo da história ou, ainda, nos fazer parte fundamental desta experiência do ver. Ou seria da nossa incapacidade de ver? Ela nos dá uma pista: neste jogo, já não é possível imergir completamente. Conhecermos seus mecanismos não faz de nós melhores jogadores.
Para travar contato com o trabalho de Isis Gasparini em Museu-mise-en-scène, parece fazer mais sentido falar de algo próximo ao que relata Virgínia Woolf em seu diário de 14 de maio de 1925: “A verdade é que não se consegue escrever diretamente sobre a alma. Observada, ela some.” Aqui, a mesma relação paradoxal. Ao tentarmos nos ater ao discurso do dispositivo, algo da experiência do “estar com a arte” (como sugere os artistas britânicos Gilbert e George) nos escapa. Então, como conviver com a arte? Como experimentá-la dentro de um ambiente que já produziu tantos discursos sobre ela e construiu tantas estruturas para mediar e moldar a relação que estabelece conosco?
Uma das saídas, sem garantias, continua sendo se deixar capturar pela proposta da exposição, quando, para nós que escrevemos este texto, torna-se factível, inclusive, ser público novamente, como você aqui. Sem sermos sugestionadas pela memória do dia em que discutimos sobre alinhar as fotografias pelos olhos dos retratados com a altura dos olhos de uma pessoa de altura média.
No chão, a fotografia virou objeto, tem peso, volume e textura. O ambiente segue escuro, mas alguma luz e outras cores podem ser encontradas na imagem que revela uma pintura. Parte de uma pintura. Interrompida na construção minuciosa da artista por um quadrante lilás. Ainda em busca de uma luz fugidia, encontramos a janela de um museu. Cortinas balançam um espaço-entre. No vídeo, é possível espiar o que Isis escolheu não nos deixar ver. Ou teria sido o museu? O vermelho viciado que se sobressai dentro de uma sala com poltronas e carpete parece exaltar coágulos do sistema museológico. Um flash anula o rosto da mulher, face que poderíamos completar com tantas outras, dado o repertório clássico de retratos que povoam nosso imaginário. Na parede azul, a legenda é mais importante do que a obra emoldurada num dourado que reluz passado. Os cartões comprados em loja de souvenir, expostos ao sol, trazem o gesto da investigação de luz e cor também ensejada por Claude Monet, sobre a Catedral de Rouen (1890).
O desejo por uma coreografia da luz e o uso de imagens emblemáticas da história da arte dão volume a uma busca cíclica que aponta para a possibilidade de nos relacionarmos com os dispositivos como um turista que não se surpreende com os costumes de uma cidade estrangeira, e topa o desafio com que lidam os artistas quando implicados em seus trabalhos: a conexão unívoca com as coisas do mundo, com os outros e consigo mesmo.
Coletivo Ágata