Samambaias e invertebrados
A partir da blasfêmia delírio-tropical Muito sol na cachoeira, de Bruno Novelli
Determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade. Oposicionista, utópico e nada inocente. A polaridade binária do público e do privado não o estrutura. Com o ciborgue, a natureza e a cultura, dualidade moderna primordial, são resignificadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra, trata-se de desobediência e insubordinação manifesta, é balbúrdia autoindicada por entidades livres.
Apesar dos trabalhos desta exposição enquadrarem-se na pintura enquanto linguagem, agrada-nos antes disso compreendê-los estendendo nossa atenção para onde as pinturas apontam, por quais caminhos de pensamento percorrem: numa perspectiva cultural-natural ampliada, miram o próprio estatuto das imagens. Confiando na confusão enquanto método de ação e na linguagem escrita enquanto compromisso de responsabilidade com o artista e seu campo discursivo, propomos aqui não a mutação do órgão olho, pois não há por agora implantes, transplantes, enxertos ou próteses, mas uma torsão na mirada, ao menos no que tange aquilo que as pinturas provocam. Trata-se de uma certa visão, própria destes seres, que proliferam-se, multiplicam-se. O sexo-ciborgue restabeleceria, em alguma medida, a admirável complexidade replicativa das samambaias e dos invertebrados, seres que convidamos para alojarem-se como pequenos monstros no título deste texto, como a série de carrancas, rabiscos, pedras, flores e frutas que convivem no habitat tela. Signos de exuberância e pastiche alegórico, que não obedecem a uma narrativa linear. Não constitui-se uma cena.
Se não constituem um enredo fechado, convido para que olhemos para a publicação que acompanha a mostra com fotos do processo de Bruno Novelli em seu ateliê. A partir de um atlas de referências, um arquivo digital de imagens é impresso, recortado e fixado às paredes, em um processo diagramático e cartográfico de escrita e desenho. A imagem é anexada ao vocabulário da pintura, que parte de uma investigação da cor, da sua modulação gradiente, sua espacilização por meio de um grid e na forma retangular semelhante a uma folha A4. Digitalmente, a imagem torna-se uma camada sobreposta, como numa ferramenta de edição. Após estudos por meio de desenho, fotografia e impressão, ela é pintada em tinta acrílica sobre tela.
A esquadrinhadura da cor de Bruno Novelli investe na sua indeterminação – olhe para o rosa, aquele rosa cor de boto-cor-de-rosa, cuja pele, apesar de extremamente macia, a pele deste boto-cor-de-rosa, que não invento, mas descrevo (talvez o mesmo que nadou entre nossas coxas quando escrevia escondido pra ti). Veja como são rosas e não rosa, que agem sob efeito de brancos e , neste momento, não se trata de palavras no plural, nem se trata mais da cor, mas de todas as possibilidades que a cor dá. É preciso olhar para a cor como um campo, senti-la como uma premonição, que nos permite vislumbrar um campo muito mais aberto nas transições, nos gradientes, nas passagens, nos degradês, nas luminosidades plastificadas, nos sombreados, nas cores pujantes, nos reflexos luminosos de pedras preciosas naturalmente incrustadas pela ações que se dão na morosidade do tempo, como água que escorre em jatos e jorros contínuos. Energia, irradiação. Muito sol. O sol é refletido, as luzes rebatem na água, que faz o céu revelar-se espelhado na placidez de um rio interrompida pela máquina barco em meio à floresta. São sopros de cores que carregam em si as rotas dos ventos, que formam correntes de ar, que movimentam as águas, regidos por lógicas científicas. As correntes marítimas, movimentos diferentes do fluxo dos rios, são intimamente conectadas ao calendário lunar. O brilho da lua é reflexo da luz do sol. Da mesma forma que os planetas, ela não tem luz própria. O observador terrestre vê partes diferentes da lua iluminadas pelo sol, enquanto ela se movimenta ao redor da terra, mas é preciso desconfiar daquilo que o olho enxerga.
Pensemos em uma tradição específica: a apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura, que provoca a relação entre organismo e máquina como o que se chama de uma guerra de fronteiras. Uma sorte de tempo mítico – somos todos quimeras, híbridos teóricos e fabricados de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; eis o interesse em como enxerga este ser, em como vemos as imagens: ser ciborgue determina nossa política. Imagem condensada, tanto da imaginação, quanto da realidade material: conceber então dois centros, conjugados, que estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. Como as pinturas provocam, a partir do que vemos, um campo mais aberto? Na criação plástica reside uma possibilidade de recurso imaginativo.
Na tradição utópica de se imaginar um mundo sem gênero, aponta-se que este “será talvez um mundo sem gênese, mas, talvez, também, um mundo sem fim”. Uma ficção científica que não passa necessariamente por narrativas de cosmogênese ou apocalipse, radiantes ou cintilantes, obedecendo a uma lógica de repressão diferente. Seria esta uma repressão a partir da qual, em nome de nossa sobrevivência, precisaríamos tudo compreender? Este texto ecoa um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção.
A pintura de Bruno Novelli oferece ferramentas visuais que dão a pensar na superfície da tela como uma espécie de interface informática por meio da cor. Uma outra ordem visual – quiçá as pinceladas revelem que escondem por trás de si milhares de pixels – alicerçada não num objeto, mas num modelo e em suas regras formais de manipulação.
Ulisses Carrilho