É sempre tempo de não ter tempo. De poderia ter sido. De como seria bom se tivéssemos tempo para descobrir coisas, para ficar juntos, para ver o meio-dia chegar e não ter feito nada para o tempo render. As pessoas morrem, os aplicativos não param de vibrar e estamos um tanto mais tristes. Perdi gente daí. E isso me faz não querer voltar. Uma vontade de ficar parada. Ninguém disse nada que abrandasse essa coisa ruim de negar o lugar de origem. Negar é exagero, mas tentar esquecer é outra coisa. Penso como deve ser bom ter a praia no caminho de casa. Eu quis muito ler seu diário. Receber uma carta, escrever outra. E esse tempo todo coloquei para mim mesma a desculpa que eu ando esgotada das coisas da vida. É quase sempre assim que o fim do dia vem e quando o fim do ano volta e eu não tenho mais desculpa para fugir daí. Às vezes me encho de uma esperança que a opção pela desistência me dá. É só uma visita, uma distração, como quem vai ali e volta logo, quase como se nem fosse. Essa escolha para mim podia ser óbvia. Nem bem fui e já voltei. Nunca é assim. “Avião é sair de si e ver seus próprios incêndios”. Outro dia tentei explicar que não tenho muito mais motivos para ir. Fui acusada de ingratidão. “Culpa é mesmo um saco de pedra que não largo”. É bem isso, sair daqui é um sofrimento de uma véspera que dura muito, que nem paixão que não se cumpre – é certa que está lá, posta, dita para você mesmo e para o outro, mas fica sempre na recusa ou na ausência. Uma boca de nãos. A vida podia ser um fazer nada, de vez em quando, e ser só simples, sem muitos esforços, sem muitas dores, sem muitos abismos. Uma sucessão de episódios simples, sem sustos, como um lugar na sombra. “Um retrato paisagem”. Mas é que há uma insistência por produzir coisas sempre novas e conhecer gente que agora está nos lugares que eu gostava tanto. Eu sei, alguns nem existem mais. Aí é assim. “estou olhando para as costas do Hotel Esplanada, cujas estruturas sólidas anos depois seriam transformadas em outro lugar”. Tudo dura pouco. Mas eu gosto de pensar que o Domínio e o Pertinho do céu ainda existem, que o Pátio da Comunicação ainda é amarelo e “próspero” e que eu posso subir as escadas do Alpendre. “Escultura por quilo”. A tendência é virar estacionamento. “Ornamento aventura errante”. Uso isso como justificativa. É por isso que eu me incendeio tanto com as vozes inconformadas da geração de vocês. Nós tivemos que sair, não inventamos outros barulhos. E não sei o que se passa aí de verdade. Vejo a cidade nos seus olhos, nos seus desenhos e nas tantas fotos que você enviava. Tento me aproximar de como você entra e habita no Serviluz, na Praia de Iracema, no Farol, no Aterro. Sinto ciúme da Praia dos Crush. Eu sinto a vontade do outro, embora não saiba muito como ela se dá aí. “seu perfume, mini-facas no meu peito”. Vejo uma solicitação de coragem. Um pedido de engajamento. É preciso ir, penso, e ir logo. A paisagem e o lugar estão quase desaparecendo em mim. Dia sem sol. Sim, eu vou. E quem me vir, vai enxergar a ranhura do tempo em que não estive aí. E talvez quase nada da coragem incondicional para estar de volta. “Eu sou igual a um deserto, onde ninguém quer viver”. Voltar é um gesto autodestrutivo de solidão. Eu não sei mais viver como antes, sou rígida, não encaixo nem cá, nem aí. Uma grande ilha vagando sem atracar, à margem, enquanto há vida e falências. Diante disso, não há motivos para não correr qualquer que seja o risco. Apenas ir. “pra que tanta indecisão?/ se o sol está aí para nos assar/ pra quê tanta indecisão?/ se a chuva invade e alaga, como um grande mar”. O rumor de tudo que estão fazendo liberou a fronteira. Entro sem lamúria. Uma labareda me pega pela mão. Quem são vocês? “Mas a gente é muito novo”. O vento voltou a uivar essa noite. Permanência método resistência: uma fórmula de poema. “eu sou o acrobata do banco de trás e só você me vê.” E assim, dá-se a ver uma imagem num contra, num combate, num levante. Um pouco mais perto, uma enxurrada sem freio de respostas para uma imagem desviante. E estavam todos ali, como num rasgo na cidade. Nada à toa, senão uma palavra sendo coisa, sendo ação, sendo giro para inverter o entretempo falseado. Nessa palavra, me ocorreu erguer a vista e olhar para o lugar. Ver no corte do texto viçoso de vocês a escrita de outra cidade. Foi preciso mesmo voltar e estar de novo aqui. “Praia do Futuro”. Mataram pessoas. Penso: é preciso estar de novo aqui. Vão construir um aquário – é preciso estar de novo aqui. “Furacão – resposta selvagem”: estar aqui. Estamos sentados no meio-fio, naquele pedaço de sombra. E eu pergunto dos desenhos coloridos no seu braço. A gente pensa em escrever alguma coisa. E logo desiste. Escrita burocrática e pré-projetos não interessam mais – formular uma estratégia de estar na cidade parece coisa de artista, uma cena ensaiada, um lugar transformado em objeto de pesquisa. É preciso dizer não. “Perguntas Ordinárias em Percursos Existenciais”. Bora. A praia sempre é um norte, sempre me localizei na cidade pela praia. Eu, pequena-burguesa. Ainda é assim o desenho da cidade e entrar nela é certo que vai desconcentrar. E fico tentando me revirar para achar os últimos lugares em que estive. Como se saísse de mim uma cobrança sobre os lugares, ora veja só. Esse é o tempo que tenho e gasto desse jeito torto, é como posso. Bora, deixa de coisa. O sol apareceu e nos tirou da calçada. Mormaço. É, bora. O equilíbrio entre ir e ficar. Aqui tudo está sempre indo. “Quarteirão sucesso da cidade”. Por que nunca vim aqui contigo? Remansar. Existe esse verbo? Vamos re-man-sar aqui nessa beira de mar que nunca chamamos de litoral. Não, você não quer tomar surra de areia. Nada, vamos, lá de dentro, vemos a cidade e a ponta do porto. Se você tiver coragem, ainda pegamos o pôr do sol de dentro d’água. E o David? Emudecemos. “Está tudo solto, enquanto dormia a história acaba aqui. Estamos todos jogados”. Dar testemunho parece exigir um tolo esforço por verdade. A ele, isso não foi possível. Mais do que realidade e ficção, sim, pois é, ainda esse jogo... não podemos cair em um relativismo estéril. Acho que tudo que nos atravessa, que nos toca, que nos molda, mesmo, clama por um relato. Porque não é um evento alheio e, por isso, nos convoca a nos inscrever ali. É uma escuta e um dizer, na medida do possível, que não tem a ver só com o sujeito, mas com o lugar, com o entorno próximo da pele, com as pessoas da comunidade, e com o próprio material que se torna voz para o outro. Você já leu? Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo, ‘como ele de fato foi’, mas quer dizer: “apropriar-se de uma reminiscência” daquela experiência. Como se ela “relampejasse”. Nunca te disse isso antes. É recente. Porque estou mergulhando em muita coisa que você fez e sobre você levar o daqui para lá. Nunca vai domesticar. Fico feliz que você se preocupe. O perigo é importante. Você se colocou em condição de relato, ao mesmo tempo em que o exercício se dava. Primeiramente, esqueceu do relato, esqueceu o que viria depois. Você estava ali. Esquecer o caderno, sair sem a câmera. Vá e escute. Eu insisti, lembra? Você estava implicado em se pensar com o lugar, e quase como lugar, que lhe apareceu para habitar e permanecer, lidando com o tempo e lugar presente, inteirando-se de uma posição sua e do lugar, em um embate com o que vinha do outro e reafirmando-se como sujeito desejante. Foi sendo lugar, permitindo-se ser com o lugar, que, nessa tomada de posição, você se constituiu. “O que Fortaleza te devora?” Veja, ainda estou tentando elaborar, enquanto tudo parece naufragar. Relatar é sim um ato discursivo em que o corpo vibra diante da enunciação do rememorar e na efetivação do dizer. Não bastaria que você tivesse apenas vivido a situação, foi preciso propor estar com o outro para que ela acontecesse em um aqui diferente. Narrar é uma invenção de sua experiência. “Quando todos os acidentes acontecem”. Resistir e permanecer são seus procedimentos. Há ainda alguma chance de visitarmos o campo de seus gestos – esforço, medo, risco, limite, esgotamento e a maré: preia-mar, baixa-mar e a cidade que você quer tornar visível. “Plano de fuga”. Eu sempre tive medo do mar. A sua mãe não sabe nadar. E você, nas longarinas.
Galciani Neves
Fernanda Porto; Adriana Gurgel; Vitor Cesar; Natércia Pontes; Eduardo Frota; Aline Albuquerque; Simone Barreto; Raimundo Fagner; Cidadão Instigado; Ronaldo Salgado; Carlos Augusto Lima; Alumbramento; Patrícia Araujo; Enrico Rocha; Marília Borges; Manoel Ricardo de Lima; Companhia de Arte Andanças; Alexandre Veras, Waléria Américo