Desmedida

17 Maio - 16 Junho 2018

Desmedida, aqui materializada, é um prelúdio expositivo das mais diversas ruminações e elucubrações; viagens e prospecções; documentos e imagens; ressignificações e estratégias artísticas para um imaginário exorbitante e contemporâneo de Brasil – ainda em aberto, fissurado e em permanente construção. É latente a vontade de se descortinar paisagem e território demasiadamente complexos, congenitamente incompletos e diversos, mas efetivamente transformados para além daquele projeto unificado de civilização brasileira do século XX.

 

Nessas paisagens, descobre-se então um Brasil que se faz hoje, abordando desde as feridas não cicatrizadas do passado à complexidade de realidades desconhecidas ao olhar citadino. Ou melhor, realidades que não são vivenciadas e consideradas pelo proselitismo político de uma profunda crise que por hora nos domina nos espaços urbanos de visibilidade aos quais estamos expostos e para os quais atuamos. Sim, somos um país eminentemente urbano, mas pouco conciliado com a imensidão de sua terra, sua gente e seus lastros históricos e culturais. É justamente sobre aquilo que nos é invisível que aqui se põe o foco, desmedidamente, pela arte.

 

Desmedida é fundamentalmente um título apropriado do livro Desmedida, do escritor e cineasta Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010). Ele – português angolano que se aventurou pelo Brasil por meio de um olhar que se fez estrangeiro – estabelece uma perspectiva poética e crítica de um percurso simbolicamente infinito que agrega um périplo entre Luanda, Angola; São Paulo, Brasil; São Francisco (o rio e as áreas lindeiras) e depois o retorno ao ponto de origem. Se é que de fato há uma origem e um fim, ou se está a lidar com um permanente deslocamento sinuoso e circular ao qual estamos condicionados.

 

Se da literatura partiu-se de uma crônica e relato poético de um estrangeiro – aliás, fato já recorrente em nossa história desde os primeiros viajantes, cientistas e artistas –, da visualidade, poética e documental tem-se como marco temporal e estético o longametragem de ficção Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Ao mesmo tempo em que um é crônica e história de um permanente deslocamento de descoberta pelo lugar geográfico do Rio São Francisco e das áreas contíguas, o outro é filme que resignifica a paisagem plástica brasileira, tendo como fio condutor a narrativa de um personagem em um movimento de encontro consigo mesmo nesse território dos sertões de hoje. Entretanto, os dois atuam também com os seus papéis invertidos. Essa dualidade, aliada ao confronto permanente entre o íntimo e o universal, o micro e o macro, a abundância e a escassez, o solar e a escuridão, o desenvolvimento e o abandono, a construção e a ruína, parece ser a tônica dessas apreensões da realidade sensível, na contramão da história oficial, heróica e positivista.

 

Desmedida, de fato, é sintoma comum em diversas iniciativas da arte contemporânea do Brasil que, desde os fins dos anos 2000, transbordam essa condição dual sempre confrontada. Das mais notáveis, são contempladas as produções de André Penteado (São Paulo, 1970), Daniel Frota (Rio de Janeiro, 1988), Haroldo Saboia (Fortaleza, 1985), João Castilho (Belo Horizonte, 1978), Karim Aïnouz (Fortaleza, 1966) e Marcelo Gomes (Recife, 1963), Regina Parra (São Paulo, 1981), Romy Pocztaruk (Porto Alegre, 1983) e Tuca Vieira (São Paulo, 1974); todas elas partem de uma investida inicial do que simbolicamente nos está a oeste, ora invisíveis ora escamoteados, mas em continua circularidade.

 

São trabalhos que ilustram e problematizam realidades e ficções à luz de um imaginário construído nas duas últimas décadas do século XXI. Cada artista, ao seu modo, enseja um gênero de movimento ou transitoriedade: da mata atlântica exuberante e em extinção ao cosmos do sertão e sua multiplicidade; das migrações atuais em busca de sobrevivência e trabalho às aventuras transitórias de redescoberta, vivência e encantamento; da ruína transamazônica à transposição do rio São Francisco; da missão francesa civilizatória, cultural e científica à globalização desenvolvimentista e cultural. 

 

Por hora, instados ao desequilíbrio e à desconstrução de certezas históricas, convoca-se o visitante a esse prelúdio, um ensaio à vastidão e ao abismo de tudo o que não se conhece, mantendo em consciência a idéia de que “o melhor o tempo esconde, longe muito longe, mas bem dentro aqui”.2

 

Diego Matos

 

1 CARVALHO, Ruy Duarte de. Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e Volta. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010. p. 67.

2 Versos iniciais de Trilhos Urbanos, canção de Caetano Veloso.