Lugares de partida
O termo 'paradeiro' traz, em si mesmo, uma certa noção de movimento: designa um lugar onde uma pessoa ou coisa está, vai parar ou permanece. Remete, ao mesmo tempo, ao ponto de partida e de chegada de algo; a um fim ou a uma situação transitória. Tal ambiguidade e indefinição realizam-se na série de obras reunidas na mostra individual de David Almeida.
O artista ocupa-se da representação de fragmentos do espaço sem localização ou marcos geográficos específicos: não pertencem ao urbano ou ao rural. Esses fragmentos operam como não-lugares.
Apesar de sua atualidade material, eles não apresentam singularidades que os tornem únicos. E, como consequência disso, tornam-se estranhamente familiares a todos. Há, nos trabalhos, uma certa narrativa sobre o comum: apesar de compartilhados no imaginário de todos, esses não-lugares existem somente enquanto lugares-comuns, cujo vazio de significado realiza-se em e por sua generalidade. Acidentes geográficos, buracos e refúgios improvisados criam espécies de pequenas paisagens e diluem o horizonte do espectador diante da pintura.
Como em Teodolitos, série anterior realizada pelo artista, a pesquisa orienta-se para a apreensão e representação do espaço existente entre as coisas no mundo. Nesses trabalhos anteriores, a paisagem era subitamente interrompida por objetos e fendas intencionalmente marcadas. Já nos trabalhos reunidos na mostra, David Almeida parece explorar a fratura em si, aprofundando-se em uma busca pela indeterminação dos espaços e dos referentes imagéticos que permeiam nossa imaginação geográfica. Os espaços criados, marcados sempre pela sombra ou buraco, são invariavelmente ausências, que, ao mesmo tempo, estão presentes enquanto pintura, como em Ravina e Barrafunda.
Intitulados como fatos geográficos, nesses dois trabalhos, as camadas de tintas parecem se comportar como horizontes subsuperficiais do solo - muitas vezes sem que haja uma transição abrupta dentro da paleta de cores. O artista suspende a escala real dos fenômenos representados, confundindo nossas referências acerca de certos fenômenos: em Estivemos aqui em algum lugar no tempo uma espécie de cânion é reduzido a escala fotográfica, e sua dimensão real assume caráter secundário diante da concretude e matéria contida na pintura. Os fragmentos do espaço, porém, ao se tornarem objetos centrais da pintura, têm condição de não-lugar suspensos.
A dialética entre não-lugar e lugar realiza-se nos trabalhos presentes na mostra: há uma dinâmica específica proposta pelo artista, na qual o não-lugar, representado, adquire status de lugar pela operação artística. Como paradeiro, a pintura é ponto de partida e de cessação dessa dinâmica e, na mostra, Fissura funciona como uma espécie de índice para tal operação. Diferente de todos os outros, o trabalho remete diretamente a um fragmento urbano e, como obra, ele opera na reconstrução de dada espacialidade. Tal operação realiza-se em uma espécie de concessão do estatuto de lugar a fragmentos espaciais quase indiferenciados.
No limite, diante das imagens evocadas e contidas nos trabalhos, a operação da pintura possibilita o surgimento de narrativas polissêmicas sobre esses não-lugares. Constrói-se, desta forma, um possível enunciado sobre o fim desses fragmentos espaciais, no qual se inscreve seu próprio recomeço: nos abrigos improvisados - com caráter quase apocalíptico - nas ravinas, buracos e cenas de solo remexido desmancham-se certezas sobre o futuro.
Ana Roman