Antes de designar o conhecido golpe, “Boa noite, Cinderela” foi o nome de um quadro do programa de televisão de Silvio Santos, exibido nas décadas de 1970 e 1980. A cada episódio, o apresentador interagia com três meninas, com idades entre 3 e 5 anos aproximadamente, candidatas ao posto de Cinderela daquela noite. A escolhida era contemplada com o abraço de um príncipe – representado por um menino um pouco mais velho –, e tinha seu sonho realizado: geralmente, ganhar uma boneca, uma bicicleta, uma máquina de costura... Não há muitas imagens do referido programa nas plataformas online de compartilhamento de vídeos. Em um dos raros trechos disponíveis, vemos a menina Ketlin, então com três anos de idade, mesmerizada com sua própria imagem em um dos televisores do estúdio de gravação[i]. Encantada pela imagem eletrônica de si mesma, Ketlin resiste a olhar para o apresentador em carne-e-osso. Esta cena, breve e contundente, revela um aspecto crucial, tanto do ato criminoso de drogar uma pessoa desconhecida sem que ela perceba, quanto da poética de Giulia Puntel.
Tudo gira – no golpe como na pintura de Puntel – em torno da força centrípeta das imagens. De aparência sedutora, amistosa ou inofensiva, o golpista constrói seu rosto como imagem-isca que transformará sua vítima em uma espécie de pequena Ketlin, capturada e vulnerável diante da imagem. Em A expressão das mãos (1997), Harun Farocki comenta uma cena de Pickup on South Street (1953), de Samuel Fuller, na qual vemos um homem que, com olhar e sorriso galantes, seduz uma jovem senhora no metrô enquanto, com mãos sorrateiras, furta sua carteira. O realizador alemão reivindica uma diferença entre o close-up das mãos e o close-up do rosto, inscrevendo uma tensão entre tais imagens. Frequentemente, diz a voz em off, a imagem das mãos expressa algo que o rosto tenta esconder. Paradoxalmente, a imagem do rosto – um retrato – substitui a inteireza de uma pessoa, representando-a; algo que, no âmbito da figuração, não ocorre com nenhuma outra parte do corpo. As imagens de Giulia Puntel alimentam-se desta tensão entre um regime identitário das imagens, baseado em representação e reconhecimento, e um regime gestual, catalisador de experiências afetivas irredutíveis à linguagem.
Em um primeiro momento, a força que incide sobre nossa relação com as pinturas de Puntel é centrífuga. Os elementos visuais que poderiam ativar uma relação baseada no reconhecimento de uma identidade ou de uma emoção são posicionados, virtualmente, no espaço fora da tela. Este modo de compor imagens remete mais aos enquadramentos do cinema do que à tradição da pintura figurativa, cujas composições foram frequentemente organizadas em função dos limites da tela, que as continham. O espaço fora da tela – que o cinema pode ou não tornar visível conforme sua narrativa se desdobra – permanece um mistério insolúvel nas pinturas de Giulia Puntel. Neste sentido, os trabalhos reunidos em boa noite cinderela não oferecem ao espectador uma narrativa. Eles instauram uma atmosfera que permanece em suspenso, graças à própria condição pictural destas imagens.
Se a composição-enquadramento das cenas de Giulia Puntel nos empurram para fora do quadro (ou para trás, no caso de prato do dia), a artista lança mão de duas estratégias que nos puxam de volta para a superfície de suas imagens. Uma delas desdobra-se no plano figurativo e consiste na criação de características ambíguas, que inscrevem suas personagens nos limites entre o humano e o animal. A personagem roxa que vemos em Briguelas, a figura de amarelo em O amigo e o penteado da personagem de Espelho impedem que nosso olhar se perca em uma busca viciada por narrativa e sentido. Estas características nos mobilizam não pelo significado que poderíamos atribuir, simbólica ou culturalmente, a elas; elas exercem sobre nós o efeito magnetizador que um engolidor de facas ou uma mulher barbada exercem sobre o espectador do circo.
A outra estratégia desdobra-se no plano formal e material desta produção, através do emprego de uma técnica que não se propõe a sublimar a condição pictórica destas imagens. Assim, a artista modula nossa percepção, fazendo-a oscilar entre a tensão que um filme de suspense instaura entre os espaços dentro e fora do quadro e a atenção imanente que a fruição de uma pintura modernista demanda. Mas este diálogo com os fundamentos da pintura não está, na poética de Giulia Puntel, a serviço de um novo formalismo. Trata-se, antes, de uma estratégia para a desaceleração do elevado volume de imagens em alta resolução que passa, veloz, pelos diversos feeds que saturam nosso campo de visão e nos instalam em um estado de letargia e entorpecimento, aproximando-nos de algumas personagens da pintura Puntel e da pequena Katlin, no breve instante em que surpreende a si mesma no televisor. Esta inevitável perda de consciência diante da imagem já era anunciada, nos anos 1970, no refrão da canção de abertura do programa de Sílvio Santos: “Boa noite, Cinderela, está na hora de você sonhar...”
Icaro Ferraz Vidal Junior