Zip'Up: Subtrações: Celina Portella

20 Setembro - 27 Outubro 2018

Salto no escuro e histórias de sombra

 

"[as sombras] são sempre companhia, unidas aos corpos" (Leonardo da Vinci, s.d. ) [1]

 

Um conjunto de forças atuando em oposição parece fundamentar o processo de Celina Portella em Subtrações. A ideia de uma equação sugerida pelo título não conduz, entretanto, a um resultado final definitivo. Denominador comum às séries, a tinta preta que invade as imagens ganha formas e funções distintas: ora surge como um volume denso e disforme; ora como um desenho rígido de estruturas geométricas. O corpo da artista também assume papéis variados, intercalando situações de expansão e contenção ao interagir com a massa negra pintada sobre as fotos.

 

Nessa equação final, não há um único equilíbrio possível. Pode-se encontrar momentos de maior estabilidade como na fotoinstalação Em Contraste, na qual ela parece conseguir conter a invasão do bloco de tinta sobre sua própria imagem dentro da moldura; e outros sem sinal de sustentação ou permanência. É o caso dos autorretratos com formas geométricas básicas (círculo, quadrado e triângulo), onde a ausência de referentes espaciais cria um efeito de queda iminente, como na própria noção de um abismo entre dois tempos característica à fotografia.

 

Ao longo da última década, Celina vem utilizando o corpo para tratar dos dilemas da representação e pôr em xeque a suposta transparência dos dispositivos de mediação do real. Sua produção como artista visual acontece em paralelo à dança contemporânea, que explica muito do interesse pelo movimento e limites corpóreos tanto na relação com o espaço quanto na imagem. Em trabalhos anteriores, como na videoinstalação Derrube (2009), a noção do duplo, outra premissa da fotografia, é questionada pela ação da artista de destruir sua própria projeção ao golpear a parede que serve de suporte. Um recurso parecido foi utilizado também em Movimientos Detenidos (2008), ação no espaço urbano realizada em Valparaíso, no Chile, na qual ela se desloca pela cidade e deixa a imagem do próprio corpo impressa nos muros.

 

Vale pensar nos dois exemplos como uma introdução a processos retomados nesses novos trabalhos. O mais nítido é a relação com a ideia da sombra. Embora de forma não tão clara quanto nas projeções anteriores, que de fato tratam da interação entre o corpo-objeto com sua forma mais elementar de representação, as sombras sugeridas aqui são opacas; têm um peso matérico bem distinto do contorno em forma de vulto que as caracterizam. Mas o princípio na relação com as imagens é similar - é por meio dessas densas camadas escuras que elas se distinguem, formando situações que só existem pela interação entre as camadas visíveis e ocultas.

 

A sombra é também um ponto em comum nos processos originários da representação da imagem. Em seus primórdios, tanto a pintura quanto a fotografia buscaram materializar o contorno projetado a partir de um objeto. Das primeiras pinturas primitivas em Lascaux, reveladas por decalque utilizando um pó colorido, havia desde já um procedimento de remoção a partir do contorno, "uma sombra em negativo, pintura não pintada ("soprava-se em torno") obtida por subtração", como define Philippe Dubois em O Ato FotográficoOutros Ensaios.[2] Mas é só com a invenção da fotografia que de fato se tornaria possível captá-la em tempo real.

 

Ao misturar essas duas técnicas, Celina parece buscar uma aproximação entre elas por meio das sombras. O autorretrato é significativo nesse processo. Se o corpo como objeto ausente foi uma das mudanças trazidas com a fotografia - antes, nas técnicas que a precederam, como a câmera obscura, era preciso estar dentro do dispositivo para que a projeção acontecesse - suas imagens parecem evitar esse desaparecimento. Mesmo que, por vezes, oprimidos, os corpos seguem presentes quase como um ato de resistência, índice mais verdadeiro.

 

Nathalia Lavigne

 

[1] Leonardo da Vinci, Ms 2038 da Biblioteca Nacional da França (folhes 21, 22, 29, 30). Citado em: Dubois, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Papirus Editora, 1994, p. 120.

[2] Ibid., p. 116.