Ponto de ebulição
PB29. O azul ultramar que evoca a cor-emblema de Yves Klein ganha um título que o joga para uma impessoalidade de tom asséptico. No entanto, algo que é apreendido a priori, mas subvertido na sequência, é um dos trunfos da obra de RAG, que ganha sua primeira individual na Zipper.
O International Klein Blue, fórmula registrada pelo genial artista francês em 19 de maio de 1960 no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, recebendo o número de identificação 63471, é o dado mais midiático lembrado a respeito do grande artista nascido em Nice, em 1928, e que morreu cedo, em 1962. Hoje, quando algum artista utiliza um azul similar ao de Klein, é inevitável ser remetido a ele.
Cinquenta anos depois, RAG, artista paulistano que, por 20 anos trabalhou como diretor de arte e era conhecido como Ricardo Aguiar, utiliza o azul como uma das cores-chave da série de 32 telas que vem produzindo rotineiramente em seu ateliê em Pinheiros. PB29 faz parte de sofisticada série que a Zipper exibe agora.
Os títulos das pinturas conjugam o nome científico do pigmento e seu código universal utilizado na obra em questão. Assim, elementos da tabela periódica, tais como Si (silício) e Br (bromo), surgem na superfície das telas, bem como combinações mais complexas, como a Dihydroxyanthraquinone –ao menos no nível semântico. Tudo em inglês, como aparece grafado nos tubos de tinta que o artista compra. O design das letras também exala racionalismo, exatidão.
"A arte deixou de ser [...] uma espécie de inspiração que jorra de fonte desconhecida, avançando ao acaso e manifestando o lado exterior e pitoresco das coisas. A arte é fruto da lógica e da razão, complementadas pelo gênio embora obedecendo a imperativos da necessidade e informada por leis superiores", escreveu Klein em diário, no ano de 1958. O binômio imaginação/lógica apresentado pelo artista francês cabe e pode ser transposto em uma análise da obra de RAG.
Influenciado por nomes contemporâneos como o de Damien Hirst – que frisou que a ciência, para muitos, é a nova religião, em exposição na galeria londrina Paul Stolper, em 2005–, RAG cria duetos para a ciência dançar com a arte. Seleciona o sem-número de variações de cores, muitas delas produzidas artificialmente, pega o suporte histórico da arte, a pintura (via telas), e vai trabalhando sobre a superfície clássica. Porém, ao gravar o "ID" de cada peça, eis que começa algo bem menos rígido. O que se anunciava impessoalmente, a denominação da fórmula química e seu decorrente nome, são feitos a mão pelo próprio artista. RAG, assim, brinca e embaralha conceitos como simulacro e gestual. A escolha da moldura também segue a intuição do artista. RAG enquadra-as por métodos absolutamente subjetivos. E até encomendou tudo é empregado pelo artista.
Nesse lidar entre o planejado e o que sofre um descontrole, RAG vai criando sua poética. Se Goethe, em Teoria das Cores, já lembrava que a cor é algo maior do que as leis científicas defendem, RAG lança mão dessa percepção ampliada e vai ao encontro da busca e do questionamento da identidade por meio da arte. Questão colocada por diversos pintores da cena contemporânea, RAG se aproxima, por exemplo, do jogo entre pictórico e especular da obra recente de Luiz Zerbini e Hugo Houayek, em especial na tela em que emprega tom prateado. O duplo que vem do embate entre o ser e o objeto, o real e o refletido, o material e o representado, entre outras situações, interessa ao artista paulistano.
"Nós somos sistemas físicos. Arranjos complexos de carbono e de água. Nosso comportamento não é exceção a essas leis. Logo, se é Deus programando isto de antemão e sabendo de tudo ou se são leis físicas nos governando, não há muito espaço para a liberdade", reclama um dos personagens de Waking Life, filme-animação perturbador de Richard Linklater. "Será a liberdade apenas uma questão de probabilidade? Aleatoriedade em um sistema caótico? Eu prefiro ser uma engrenagem em uma máquina física e determinista que uma transgressão aleatória", continua a questionar o personagem.
Assim, no espaço "entre" o determinado e o instável, RAG vai produzindo calmamente sua obra. Nesses interstícios, o artista paulistano continua a repetir, via pintura, questionamentos comuns ao homem desde outras eras. "É fácil perceber que o valor de tal cor é sublinhado por tal forma e atenuado por tal outra. [...] O número de cores e de formas é infinito. Que dizer de suas combinações e de seus efeitos? Esse assunto é inesgotável", destaca Kandinsky em seu essencial Do Espiritual na Arte. RAG está começando sua carreira mergulhando em plenas incertezas. E já começa a produzir serigrafias e também planeja séries escultóricas nas quais vai investigar o mercado das vaidades mais em voga, o das cirurgias "estéticas". A obra de RAG tem tudo para ser incômoda e, por isso, necessária.
Mario Gioia