Zip'Up: Presenças

19 Março - 23 Abril 2011

“Assim se alternavam sem interrupção novos, graciosos e espetaculares cenários, diante de nossos olhos admirados, até que, finalmente, a capital do novo reino, iluminada festivamente pelo sol poente, se patenteou à nossa vista (...). Indescritível sensação apoderou-se de todos nós, no momento em que a âncora deu no fundo de outro continente, e o troar dos canhões, com irrupção de música de guerra, saudou o almejado alvo, a feliz conclusão da viagem marítima.” (1)

 

“O lugar não é unicamente um fragmento de espaço ou um ponto imaginário. Constitui a si mesmo uma forma de ver, de conhecer e de entender o mundo. Em efeito, ver e pensar o mundo como um conjunto de lugares fixa uma perspectiva muito particular: passamos a discernir aspectos singulares, a perceber conexões e distâncias entre pessoas, coisas e lugares, a assimilar vivências e significados particulares. Quando pensamos em tipos de lugares – como um bosque, uma rua, uma escola, uma sala, uma cidade –, associamos ideias, ativamos nossa memória voluntária e involuntária, nos surgem imagens, conceitos e circunstâncias.” (2)

 

Ao aportar no Japão, o olhar de Ilana Lichtenstein certamente se aproximou do tom encantatório com o qual o Rio de Janeiro foi eternizado em livro por naturalistas no século 19. Mas a experiência do artista-viajante contemporâneo também se liga a lugares dos mais variados tipos, e talvez aquela vinculada à memória seja certamente marcante. Por isso, algumas das imagens inaugurais de Presenças, coletiva que estreia nova sala expositiva na Zipper Galeria, são de autoria da artista paulistana.

 

Se a atividade fotográfica corriqueira de Lichtenstein em São Paulo percorre em especial o retrato, seu foco nas cidades de Tóquio e Kyoto captura suas particularidades urbano-espaciais. Contudo, o tempo é componente essencial dos elementos ternamente registrados pela artista. Uma escadaria, uma caixa d’água, uma alameda, por exemplo, ganham um status singular, raro. Apesar do predomínio do verde, surgem outras cores nas composições – como o vermelho –, que se materializam e rompem a neutralidade da corrente “inexpressiva” (3) destacada por Charlotte Cotton em seu fundamental A Fotografia como Arte Contemporânea.

 

Ainda em Presenças, Angela Varela contribui para uma certa narrativa de deslocamento com o vídeo Considerações no Meio da Noite. Gaúcha radicada em São Paulo, a artista produziu esse trabalho audiovisual durante residência na cidade francesa de Marnay-sur-Seine. Há um descontrole no caminhar da protagonista, com uma filmagem algo trêmula, de câmera na mão, que, apesar de ser uma obra de videoarte, pode remeter a procedimentos caseiros de captação veiculados pelo YouTube ou a elogiados títulos do gênero terror/fantástico, como A Bruxa de Blair (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, e A Estrada Perdida (1997), de David Lynch. “Mergulhei em situações desconhecidas, nas quais, dada a pouca luminosidade encontrada e a falta de conhecimento prévio do lugar, minhas referências espaciais (a linha do horizonte, o chão etc.) estiveram temporariamente borradas, suspensas, oportunizando a vivência de algo desconhecido”, frisa Varela.

 

Pelos corredores e cantos da memória, o lápis de Tatiana Dalla Bona traça suas formas. A infância ressurge de maneira enigmática, por meio de casacos sem pessoas a vesti-los. Outra série da artista – que mudou com freqüência de cidade, numa circulação contínua entre Brasil e França – exibe figuras familiares quase desfeitas, de contornos pouco nítidos, pois foram retratadas a partir de telas de computador com o Skype ligado. Um urso de brinquedo, mas de semblante sem contentamento algum, é foco de outros desenhos de Dalla Bona. “O sofrimento – isto é, passar um mau momento – é uma ajuda à memória (...). A grande ilusão é que a globalização é uma melhoria.” (4)

 

Pedro Cappeletti conduz sua pesquisa sobre o desenho apresentando em Presenças trabalhos nos quais o processo torna-se o norte de sua poética. A exemplo da participação em coletivas como a SP Arte Specific e Ateliê Fidalga no Paço das Artes, o amassar de uma página de papel com uma linha  desenhada, a inserção “subversiva” de elementos triviais deslocados, como uma dobradiça, em um espaço neutro e a transmutação de materiais leves (o ar de bexigas) em massa mais densa (esculturas de gesso) atestam o múltiplo olhar do artista sobre o entorno e a transformação do banal em algo que almeja mais.

 

Já Bettina Vaz Guimarães empreende uma “invasão” pictórica na sala de dimensões contidas do segundo andar do prédio projetado por Marcelo Rosenbaum, dando prosseguimento a intervenções cromáticas presentes em mostras anteriores, como Aluga-Se. A artista utiliza pequenas estruturas de MDF, que ganham tons similares à escala de cores do espaço, de acordo com as diferenças de luminosidade que duas diminutas janelas de vidro proporcionam às regulares formas do espaço expositivo. A galeria também vira campo de experimentação, com seus objetos cotidianos transformados em representações criadas pela artista. Numa espécie de “Suíte Pantone”, Vaz Guimarães finaliza Presenças com um vigoroso projeto poético, de alcance visual irrestrito.

 

Mario Gioia

 

(1) SPIX, Johann Baptist Von & MARTIUS, Carl Friedrich Von. Viagem pelo Brasil – Livro Primeiro. Melhoramentos, São Paulo, p.42

(2) MAH, Sergio (org.). Lugar/Place. La Fábrica, Madri, 2008, p.7

(3) COTTON, Charlotte. A Fotografia como Arte Contemporânea. Martins Fontes, São Paulo, 2010, p.81

(4) BRASIL, Ubiratan. "Paul Theroux e a busca do tempo vivido". O Estado de S.Paulo, Sabático, 26.fev.2011, p.S3