Dos ex-votos, dos santos, das bulas e das embalagens
Certamente o jovem artista Gustavo Nóbrega teve, através das coleções expostas no antiquário de seu avô, Seu Nóbrega, e mesmo de seu pai, o também pintor Claudino Nóbrega, a convivência com a arte sacra brasileira.
A rica iconografia de santos e santas das devoções da religião católica brasileira. Os escultores e santeiros legaram à cultura religiosa do Brasil uma memorável produção artística desde o século XVII até os nossos dias. Erudito e popular, esse imaginário estava nos templos religiosos, nos oratórios de muitas casas brasileiras, pobres ou ricas. O certo é que a pintura e a escultura de santos, de altares e de tetos de retábulos parietais notabilizaram grandes artistas do Barroco ao Rococó na Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Essa pequena introdução serve como começo de conversa sobre a obra de Gustavo Nóbrega, pintor e instalador. Sua produção recente, mostrada nessa exposição, expande, se amplia e se apropria desse rico imaginário religioso de santos e santas, buscando um tratamento plástico, interseções entre o profano e o sagrado, um halo de sensações e de reverberações milagrosas como obras votivas, ex-votos contemporâneos. Um riscador de milagres, um riscador metafórico, que subtrai do milagre seu principal objetivo: o de rogar e de registrar o fato do voto, da promessa. Por que negar a reciprocidade entre o homem e o divino? Aí reside a nova proposta de eliminar a entidade sobrenatural para a qual recorremos nos momentos de desespero. Em troca ele propõe a ciência em forma de fórmulas sem subterfúgios, sem a mística do acontecimento, da ação às vezes lógica desse quebra-cabeça, desse jogo de armar cheio de provocações do corpo que salva a alma pelo milagre da medicina.
Se antes aquelas obras arcaicas do imaginário religioso se punham a invocar e a atribuir ao sobrenatural a sua salvação, Gustavo nega na sua obra esse encontro entre o homem, sua ação corporal e a entidade em virtude de graças alcançadas.
Assim, o Divinizar existe na obra entre o sagrado e o profano que são as causas transmitidas pelas bulas de medicamentos para os muitos processos de cura. Mas há aqui nessas obras um sentimento plástico, uma postura atual da representação do tema da pintura propriamente dita com suas nuances e seus resultados de atração e de atribuição, com a cor, com a magia, com a composição, com a intenção de comunicar uma idéia. De idealizar uma proposição nova, inquietante, e aí é que reside a obra de arte no momento de materializar-se com o envolvimento da linguagem simbólica, bastante para realizar a percepção dos elementos construtivos como valores plásticos abstratos.
Emanoel Araújo