Abrir picada, caminho, estrada. É preciso ir em frente. É preciso? Na obstinação de ampliar sua fatia de território, o homem rasga, edifica, molda a paisagem. No trânsito entre o ter sido e o vir a ser da paisagem, acumulam-se vestígios, restam restos. Grandes monumentos construídos em honra ao absolutamente nada.
Volumes amorfos de uma paisagem que ao ser transformada deixa de ser o que foi sem, no entanto, se constituir numa forma lógica ou adquirir uma nova função. A terra cortada, nua, num súbito, revela suas até então segredadas camadas de sedimentos que rabiscam, desenham e colorem em texturas improváveis. Terra à vista!
Essa paisagem-estorvo, em formato de barrancos abandonados, parece clamar por uma significação, um novo sentido que a livre da descomunal aparência que a atitude grotesca da engenharia civil lhe impôs. Essa inútil paisagem antiestética, extirpada de sua origem para ser desvelada crua e cruelmente, não se dá à contemplação do belo, não possui função social, mas nem por isso silencia e tampouco sua escala a deixa passer despercebida.
Fora justamente esse clamor, esse sussurro emitido pelos grotões com suas cicatrizes expostas, que servira de detonador do processo criativo do artista Rodrigo Zeferino. O paradoxo da paisagem, transformada num estrondoso monumento ao absolutamente nada, é o ponto de partida para que o artista perceba esse circuito de significação interrompido e o leve adiante esgarçando, por sua vez, os limites da linguagem fotográfica para que, enfim, a paisagem encontre uma representação que lhe afirme um lugar no mundo.
No mundo? Sim, no infinito e particular mundo simbólico e imaginário que Zeferino vem aos poucos constituindo e nos revelando em suas séries que comumente equacionam de forma original e inesperada o embate entre a luz e seus efeitos sobre a terra. Ou seria sobre a Terra - posto que na essência, seu trabalho possui a capacidade de verter o microcosmo do aparentemente banal na percepção poética do universo em escala macro?
Para representar esse mundo particular, sideral, fantástico, Zeferino cria estratégias que possibilitam "magicizar" a paisagem. As intervenções radicais feitas pela engenharia ao esculpir violentamente a terra encontram um correlato no uso que o artista faz da fotografia. Uma transgressão se sobrepõe a outra. Logo, Zeferino corrompe, de certa forma, os códigos padronizados da fotografia.
As imagens de Terra Cortada estão longe de ser a devolução mecânica e respeitosa que a fotografia de paisagem em geral devota aos monumentos. A fotografia atua nesse circuito de significados criado por Zeferino com a função de desestabilizar a percepção visual comum. Assim, o estranhamento da paisagem encontra seu duplo na forma errática que o artista vai utilizar ao fotografar com longas exposições e o uso de luzes artificiais que conferem à imagem final uma estética de contornos irreais, ainda que factíveis.
Ao final do processo a imagem representa exatamente aquilo que escapa à apreensão do olho humano. Paradoxalmente a fotografia não certifica o existente, mas documenta o que nos escapa. Imagem-imaginação! A paisagem comum se torna cenário, vestígio contundente, agora, de um lugar inapreensível, estelar, lunar.
A terra revolvida e sem sentido agora serve de símbolo de um universo inventado por meio da iconografia do artista que encontrou o seu devir poético na junção improvável dos escombros deixados pelo ar- roubos expansionistas do homem com a capacidade da fotografia em criar mundos paralelos à realidade.
Essas estratégias meticulosamente tramadas por Zeferino por vezes nos levam, em determinadas imagens, a antever uma paisagem lunar ou mesmo as florestas encantadas das narrativas das histórias in- fantis ou da literatura fantástica, porém, com a presença incisiva da passagem transformadora do homem.
A alquimia que resulta do processo do artista finda por reconectar o outrora abandonado e desenraizado grotão de terra ao cosmos. O céu em movimento, as estrelas em rebuliço, a terra cortada que denuncia a onipresença humana, o tempo que flui dessas fotografias. As imagens de Rodrigo Zeferino ecoam a ancestralidade do que se perpetua no Cosmos à revelia da ação do homem.
Eder Chiodetto