Abismo prateado
Abismos. Esse era o título de ‘trabalho’ do que vem a ser Lugar do Outro, primeira individual da artista franco-paulistana Julia Kater. A denominação é um pouco curiosa, já que predominam paisagens no conjunto de obras exibido na sala Zip’Up (ou construções que remetem ao gênero). Mas uma peça, o vídeo Tempo do Branco, explica mais sobre o tom ‘abissal’ que foi o catalisador para a artista pensar nesse prototítulo.
Tempo do Branco inverte a perspectiva de como vemos tradicionalmente a paisagem. Por meio de uma operação simples, o que era um céu azulado/gelo/cinzento, um firmamento seguro, desfaz-se e vira um elemento de perigo, tal qual um buraco sem fundo (ou com um solo muito longínquo). O referente, uma cadeia de montanhas cujos cumes podem ser dos Alpes tanto quanto qualquer outra formação do tipo, torna-se uma massa de formas pontiagudas, algo ameaçadoras, apontando para baixo (revelando o quê? Nesse sentido, dialoga com a provocativa Catedral, de Vanderlei Lopes). Kater, literalmente, nos tira o chão. Na sua estreia em vídeo, a artista acerta em enveredar pelo risco, mesmo que utilizando expedientes triviais.
A série Lugar do Outro, presente na mostra por meio de um registro isolado e de um díptico, traz a conhecida habilidade de Kater em criar colagens fotográficas, nas quais opta por uma fatura low fi – a artista é minuciosa ao acumular folhas de papel algodão em camadas marcadas por incisões feitas manualmente, dispensando ferramentas hoje banalizadas de pós-produção, como o Photoshop. O azul do céu se desenha não como algo celebrativo, mas como um dado de carga elevada, a destruir coisas belas, a deslocar e consumir o que era aparentemente rígido e sólido. O peso do mundo. Diminuta e de contornos dissolvidos, uma urbe indefinida em formato de landscape é chave na composição, pois cria uma referência, ainda que frágil e residual.
“[...] Em que e por que uma obra nos fornece buscas e perguntas, dons e dívidas, deslumbramentos e frustrações. [...] Pela arte, nossos sonhos e nossas visões, nossos fantasmas e nossos desejos são transformados a partir do interior e metamorfoseados em condições de acolher e de coletar as obras. Isso é preciso desde sempre, e muito particularmente nestes tempos globalizados do look fugaz e da imagem fugidia, do peso das palavras e do choque das bobagens, desses ópios do povo e dessas derivas do homem. Os artistas nos abrem os olhos e nos obrigam a refletir. Os fotógrafos em especial.” (1)
Em dias de blablablá tecnológico e de odes desavergonhadas a empresários ‘visionários’ de máquinas novidadeiras, a densidade da obra de Kater ganha contornos quase políticos. E ela se diferencia ainda mais dos pares por enfatizar a influência do cinema, da literatura e da psicanálise no processo artístico, campos que não devem se chocar, mas coabitar. “Breton associou psicanálise, fotografia e literatura ao afirmar que a escrita automática era uma verdadeira fotografia do pensamento” (2), assinala o teórico francês François Soulages. Assim, a artista pode ecoar em sua produção visual traços de Antonioni e Lacan, Bergman e Jung, Sebald e Angelopoulos.
“Assim, por diferentes que tenham sido uns dos outros, os grandes inovadores do cinema moderno, de Rosselini a Godard, de Bresson a Resnais, de Tati a Antonioni, de Welles a Bergman, são aqueles que afastam radicalmente sua arte do modelo teatral-propagandista, onipresente, ao contrário, no cinema clássico. Em comum, eles têm o fato de pressentir que não têm mais exatamente relação com os mesmos corpos que antes. Antes dos campos [de extermínio], antes de Hiroshima. E isso é irreversível.
Qual a cenografia para o cinema moderno, já que afinal se trata de lidar _ humor negro _ com um ‘homem novo’, com os sobreviventes das sociedades pós-industriais? Com um corpo que perdeu o lastro de seu peso, cuja débil radiografia desbotada é exibida pela televisão nascente?” (3), interroga-se o crítico de cinema Serge Daney.
O tempo escorre lentamente e não permite uma fácil apreensão, como sugere a ponta seca sobre colagem fotográfica sem título, em tom cinza/gelo, disposta numa das paredes do espaço expositivo, e outros trabalhos de Kater, como o notável Juillet. Também atestam o deslocamento da paleta (o elo com a pintura é um dos trunfos dessa produção) para tonalidades mais neutras. “Se estamos doentes de Eros, dizia Antonioni, é porque o próprio Eros está doente; e está doente não simplesmente porque está velho ou caduco em seu conteúdo, mas porque é tomado na forma pura de um tempo que se rasga, entre um passado já terminado e um futuro sem saída.” (4)
A multiplicidade plástica de Kater é marcante em Lugar do Outro. As colagens fotográficas apresentam características também da pintura, do desenho, da gravura e do tridimensional. “Esses últimos trabalhos possuem mais volume. Mostrar com isso um corpo que se faz pela sua ausência ou vestígio, por detrás destas camadas” (5), declara a artista ao crítico Bruno Moreschi.
A obra de Julia Kater, então, nos traga para espaços abissais, de conhecimento do próprio eu, em movimentos fragmentados e instáveis, numa procura contínua e que fornece mais inquietações do que resultados definidos e sedimentados.
Mario Gioia
(1) SOULAGES, François. Estética da Fotografia – Perda e Permanência. São Paulo, Senac SP, 2010, p. 350 e 351
(2) SOULAGES, François. Idem, p. 226
(3) DANEY, Serge. A Rampa. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 231
(4) DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo, Brasiliense, 2009, p. 35
(5) MORESCHI, Bruno (org.). Um de Três – Carla Chaim, Julia Kater, Marcia de Moraes. São Paulo, Funarte, 2011, p. 40