Íntima ação: Carolina Paz

4 Agosto - 1 Setembro 2012

Fireworks

 

É cena marcante na narrativa de Cópia Fiel. James (William Shimell) vislumbra os telhados e torres do pequeno casario e do conjunto de edificações de Arezzo, pelo enquadramento da janela do hotel onde revive (ou encena, mas a dúvida, decisiva, persiste e é chave no caráter aberto do filme do iraniano Abbas Kiarostami) história de amor com a personagem cujo nome não sabemos, interpretada por Juliette Binoche. As construções opacas, em cor de terra, carregam intimismo, resultam de uma visada por detrás e sintetizam, nas superfícies desgastadas, afetos intensos, memória histórica e até um embate de câmera do cineasta frente a um novo território fílmico – é a estreia em rodagem do diretor na Itália.

 

E é intrincadamente empregando janelas de poética silenciosa, nada ostensiva e sem sobressaltos que a paulistana Carolina Paz constroi a individual Íntima Ação, dentro do projeto Zip´Up, na Zipper Galeria. A artista lança mão da pintura, do vídeo e do desenho para levar o observador a um terreno mais desacelerado, onde diminutos detalhes, ligados por elos de existência precária, mas, ao mesmo tempo, potentes, sugerem experiências singulares, de ritmo cadenciado, serial, pontuadas por uma persistência que beira o obsessivo.

 

O teórico francês Jacques Aumont, em O Olho Interminável, aproximando a pintura do cinema (e, em alguns momentos, da videoarte), cria o conceito de quadro-janela, essencial na sua análise de tais artes. “Enfim, interessemo-nos, já é tempo, pelo que representa a imagem, por esse mundo imaginário 'que se afina com nossos desejos'. Uma imagem, talvez não seja supérfluo dizê-lo após Lacan, é, a um só tempo, gato por lebre, a ótica e o imaginário. Ela é feita para que nós nos percamos nela. […] Fazer uma imagem é, portanto, sempre apresentar o equivalente de um certo campo – campo visual e campo fantasmático, e os dois a um só tempo, indivisivelmente”1, destaca o ensaísta.

 

As janelas tecidas cuidadosamente por Paz têm suportes variados e tratam, em comum, do fragmento, do estilhaço, do caco. Por vezes ela utiliza a dilatação temporal tão característica da videoarte _ um dos trabalhos tem 72 minutos de duração; Confinadas (2011) transcorre por 22. Contudo, também em apenas um minuto a artista é bem-sucedida em condensar sua proposição de apreender o que é fugidio no vídeo da série A Feia Que Não Sabe Que É Tão Feia (2011). Nele, o inexpressivo movimento do ar sobre uma superfície de padronagem doméstica e banal é quem conduz a cena, captada por uma câmera fixa, quase um anticinema – ao menos se visto como a atual prática hegemônica de tal linguagem, pautada mais pelo frenesi narrativo e pelas pirotecnias visuais. “A janela pictórica abre para o mundo: sempre no mesmo sentido. O cinema multiplica as janelas, as atravessa, faz delas o lugar do mistério e do in-visto, mas também as imobiliza em sobrequadro.”2

 

Paz habilmente situa suas peças audiovisuais perto das bordas narrativas, testando a capacidade de adesão desprovida de pressa do espectador. Nos 22 minutos de Confinadas, os planos se desdobram a partir de uma superfície em negro que, bem pouco a pouco, se vê preenchida por flores de diversas matizes, delicadamente costuradas pela artista. Os 72 minutos de vídeo sem título são ainda mais exasperantes: vão de uma inicial mesa encapada por uma toalha laranja de motivos decorativos triviais, com uma xícara ao centro, para, por fim, transmutar-se em uma branquidão total, em razão do açúcar que invade o cenário, lentamente, de colherada em colherada. Uma paisagem nevada, algo lunar, recriada sobre um mobiliário corriqueiro, feita a partir de uma ação repetitiva.

 

Na montagem pouco ruidosa de Íntima Ação, a paulistana coloca em relevo, dentro de sua produção pictórica, a pequena escala e a finalização de tom passadista. Nada a ver com uma fetichização vintage, porém com uma ênfase na reinserção contemporânea de elementos a priori anacrônicos, no deslocamento e na ressignificação de objetos originários de ambientes particulares para serem exibidos segundo os códigos da arte de hoje e na marcante valorização do vestígio e do impermanente. Então, Silêncio (2012) e Ascensão (2012) são colocadas lado a lado e retratam partes do corpo da artista, mas sob um olhar de relance, que capta quase que um frame de ato rotineiro. Revelação (2011) também segue tal leitura. Já Pó (2012) remete à clássica temática do vanitas e é posta em parede da sala expositiva que ostenta janelas retangulares, a receber frequente luz.

 

Íntima Ação, vista em conjunto quase como uma instalação constituída de distintos suportes em aproximações fecundas, ecoa influências de Karen Kiliminik e Joseph Cornell, por exemplo. Talvez o momento que ateste a inquieta poética de Paz seja os dois desenhos da série Relíquia (2011-12) expostos, ambos grafite sobre papel jornal. Sabe-se que a materialidade das duas peças vai passar por intensas transformações. A decorrente fragilização do que antes se impõe como uma obra de arte mais estanque e visível só destaca a importância da ideia, do conceito. Os traços precisos que retratam trechos de molduras (reutilizadas?), cujas formas apenas são completadas na mente de quem as assiste agora, dentro de um espaço expositivo, fazem com que a obra da paulistana tenha um efeito similar de, por exemplo, fogos de artifício já em queda, depois dos rompantes de segundos de luz e cor. Rastros de existência efêmera, também se assemelham à luz corrida, desfeita e indicial dos vaga-lumes. “Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. […] Não há comunidade viva sem uma fenomenologia da apresentação em que cada indivíduo afronta _ atrai ou repele, deseja ou devora, olha ou evita – o outro. Os vaga-lumes se apresentam a seus congêneres por uma espécie de gesto mímico que tem a particularidade extraordinária de ser apenas um traço de luz intermitente, um sinal, um gesto”3. Assim, Carolina Paz opta por uma corajosa transitoriedade, uma vital incerteza, em meio a um mundo novidadeiro e de ansiedades quase histéricas.

 

Mario Gioia

 

1. AUMONT, Jacques. O Olho Interminável [Cinema e Pintura]. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 114
2. AUMONT, Jacques. Idem, p. 122

3. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte, UFMG, 2011, p. 52, 57 e 58