Morlan
Companhia Açucareira Vale do Rosário. A etiqueta em um desbotado amarelo grudada em um antigo pôster mal revela suas borradas inscrições, mas dá indícios da imagem que acaba se expandindo para o extracampo do atual registro. Retangular, lembra e reflete - já que existe uma fotografia do conjunto exibido em Requadros na qual a artista insere suas formas geométricas, de modo digital – as intervenções de cor que Mariana Tassinari trabalhou e desenvolveu em variadas séries, desde 2005, de maneira discreta e consistente.
Requadros talvez seja o recorte de Tassinari mais próximo da arquitetura que assina, ela que antes de optar pelo curso de artes plásticas trilhou alguns anos entre as pranchetas, os croquis e as maquetes. Representa ainda um momento mais silencioso na produção da artista, quando ela demora mais na seleção das imagens a serem trabalhadas e exibidas. Tais recortes, contudo, mexidos com sutileza, evocam com mais força a especificidade desses registros.
Boa parte de Requadros foi captada na metalúrgica Morlan, em Orlândia, próximo a Ribeirão Preto, no interior paulista. A antiga terra roxa de lá, que turbinou a política café-com-leite da república brasileira, hoje é território para a massificada cultura de cana, com usinas ainda de grande poderio econômico. Nesses campos particulares, a planta fabril da Morlan, fundada pelo avô de Tassinari, tem uma história com traços peculiares. O projeto de Eduardo de Almeida, um dos principais nomes da escola paulista de arquitetura, a destacar estruturas e eleger o concreto como um dos seus eixos, por que não, poéticos, une simplicidade e um caráter permeável a todo o conjunto da construção. Isso transparece nas fotografias de Tassinari, que evidentemente guarda uma perspectiva afetiva – passou na região muitas férias de infância e adolescência – a respeito da edificação e cuidadosamente retira extratos imagéticos que servem para estabelecer sua série.
O cinza das paredes, o verde dos blocos, o amarelo esmaecido dos pôsters, o ocre das poltronas e, principalmente, o branco-gelo das lousas geram as relações cromáticas que vão guiar boa parte da sedução visual do conjunto. Combinados numa atmosfera melancólica, esses elementos enfatizam um momento mais fragilizado da escola paulista de arquitetura, tributária do brutalismo e do modernismo na área, a evidenciar a robustez dos materiais e os diálogos entre essa presença e os vazios criados nos prédios. É como se esse discurso da arquitetura brasileira, que teve dias felizes de ressonância internacional até a década de 60, não obtivesse mais receptividade, perdesse interlocução e se desfizesse nas próprias formas. Parece que o aspecto igualitário, concretamente trazido nos projetos de Almeida e outros grandes nomes, recuou e hoje, com honrosas exceções, sucumbiu a programas bem mais individualistas e cerrados ao público – é só citar estilo neoclássico, condomínios fechados, shoppings/arranha-céus à beira de vias ‘marginais’ para atestarmos a derrocada do modelo. Assim, o esplendor de um movimento próprio e autoral na área parece hoje que resiste apenas em memórias, tornando o caráter vestigial tão destacado por teóricos da fotografia como Susan Sontag e François Soulages, empreendido por Tassinari, uma atitude de resistência, política. “Uma foto não é uma prova, mas um vestígio do objeto a ser fotografado […]; é, portanto, a articulação de dois enigmas, o do objeto e o do sujeito” (1), ressalta Soulages.
A geometria sensível criada pela artista vai se revelando aos poucos. Se em Requadros as intervenções de cor são menos presentes, o trabalho em cima dos registros, via sobreposições, reenquadramentos, cortes e referências ao extracampo, é ainda forte, mas não é visível a priori ao observador. Em dípticos, trípticos e polípticos feitos em 2008, um de seus anos mais produtivos, existia uma ressignificação de registros triviais que, pela edição e nova ordenação dela, avançavam rumo a questões da pintura, por exemplo. Em outras séries, Tassinari parecia enfatizar que não era apenas uma artista de pós-produção, colocando, então, sobre imagens fotográficas o traço de desenhos bastante delicados. Hoje, em Requadros, ela parece assimilar mais o que é dado, o que, diante do caos de informações e imagens, pode ser recolhido e reinterpretado, mas com uma visada menos ostensiva. Dialoga com a solidez do que mais nos ladeia, ‘corporificada’ nos móveis tão sóbrios que cria como uma proposta multidisciplinar, a dar conforto e estimular o olhar nos momentos mais ordinários, mas não menos potentes.
Mario Gioia
(1) SOULAGES, François. Estética da Fotografia – Perda e Permanência. São Paulo, Senac SP, 2010, p. 346