Quadros e esculturas

10 Novembro - 8 Dezembro 2012

Mistura e manda

 

O que ainda se pode esperar das cores num mundo que perdeu muito da capacidade de se mostrar, reduzindo-se muitas vezes a uma somatória de produtos e atos que, em sua concatenação, fazem funcionar as sociedades contemporâneas? É possível continuarmos a falar em realidade sensível quando a percepção se vê limitada, em grande parte, ao reconhecimento de acontecimentos sem origem ou destinação? Estela Sokol procura dar uma resposta discreta a esse dilema que ronda as artes visuais há uns bons cinquenta anos – afinal, qual o Matisse depois de Matisse? –, embora alguns artistas contemporâneos venham enfrentando com ousadia essas questões.

 

Em princípio, as escolhas de Estela parecem contrariar a decisão de encontrar um lugar para a cor no espaço da arte atual. Ela se recusa a pintar, a usar tintas para cobrir as superfícies em que trabalha. Seus quadros e esculturas são feitos – no que diz respeito às cores – com materiais industriais, com seus tons assépticos e homogêneos: folhas de PVC e lâminas de acrílico.

 

Estela Sokol se nega a escolher as cores com que irá trabalhar. Limita-se a empregar aquelas que encontra nesses produtos. Ela não mistura pigmentos, não tem paleta e tampouco lança mão de meios (óleo, acrílica, encáustica etc.) que ajudem a alcançar a forma exata de apresentar um verde ou um vermelho. Tampouco há pinceladas em seus trabalhos. Enfim, tudo conspira contra a associação entre cores e subjetividade. Ainda que, ao fim, a artista procure reverter o caráter dado das cores dos materiais empregados.

 

Em trabalhos anteriores e atuais, Estela já revela certo pudor em lidar com as cores. Em muitos deles, as tintas usadas – em geral fosforescentes – somente se deixavam observar de maneira indireta, por meio de seu reflexo nas paredes ou pelas frestas de formas geométricas. Era como se tivéssemos apenas uma lembrança esmaecida de um vermelho ou de um amarelo, ecos de um mundo em extinção. A presença mais ostensiva dos volumes em que as tintas eram aplicadas apontava a prevalência das formas geométricas sobre os aspectos (as cores) que poderiam reduzir sua presença impositiva, ao contrabalançar a regularidade das esculturas com a intensidade de superfícies que reverteriam, em parte, a presença excessiva dos elementos tridimensionais. No entanto, mesmo em sua fragilidade, as cores refletidas apontavam para uma realidade intensa, forças que recusavam a cristalização em contornos rígidos para deixar aberta a possibilidade de aparições sempre novas.

 

Assim, faz sentido que, à primeira vista, suas obras pareçam oscilar entre uma estética meio construtivista e meio pop. Nos trabalhos de Estela Sokol, o jogo sutil entre formas rigorosas e materiais banais procura chegar a novos modos de aparecimento, a uma experiência que dê conta de uma realidade altamente domesticada, com seus limites e possibilidades.

 

A vontade de ordem do movimento construtivo – presente sobretudo nos cubos desta exposição, que remetem explicitamente a obras de Franz Weismann e Willys de Castro – adquire uma realização que introduz novas interrogações no rigor dos sólidos geométricos em que a artista intervém. As áreas recobertas ou construídas com placas de acrílico colorido tornam claro o vínculo estreito – ao menos para a percepção, que é o que conta aqui – entre as formas geométricas, tão impessoais, e os materiais de que são feitas. Longe de apenas completar ou recobrir a área extraída do cubo de mármore branco, as construções de acrílico aparecem como uma realidade à parte.

 

Em vez de buscar introduzir complexidade num sólido geométrico estanque e idêntico a si mesmo – como fizeram admiravelmente Weissmann e Willys –, Estela se preocupa com a obtenção de uma pluralidade que advém dos diferentes modos de aparecimento do mármore e do acrílico. E nesse ponto foi decisiva a sensibilidade da artista para identificar as diferentes dimensões perceptivas que os materiais adquirem, dependendo dos contextos culturais em que surgem e da tradição que se deposita sobre eles.

 

nobreza do mármore – um adjetivo que dificilmente associaríamos a outros tipos de rocha – deriva certamente do uso que a escultura fez dele, sobretudo em seus desdobramentos acadêmicos. Num ambiente cultural em que a rudeza da matéria se opunha exemplarmente ao caráter incorpóreo da alma, só poderia ser considerado nobre o material que, por seu uso, mal se fazia notar, ao permitir que a forma escultórica sublimasse quase que por completo a sua aparência. Já as chapas de acrílico desde sempre se mostraram como um substituto barato (e vulgar) de materiais mais requintados: vidros, cristais, pedras preciosas. No entanto, se a artista tivesse optado por chapas de acrílico transparente, o resultado não teria a eficácia obtida com as chapas coloridas. E isso não apenas pelo gosto duvidoso das cores dessas chapas industriais, mas também pela menor visibilidade das lâminas transparentes. Não foi por acaso que muitos construtivistas – Naum Gabo, por exemplo – as usaram com frequência: sua transparência revelava plenamente a nitidez de seus projetos.

 

A convivência entre dois materiais tão distintos põe em xeque a relação de complementaridade entre as áreas construídas por eles. O aspecto de mostruário de loja das regiões de acrílico força o mármore a revelar a diversidade de sua constituição, e assim ele se mostra de uma nova maneira no contexto da arte, oscilando entre a aparência de revestimento de pisos e paredes ou de uma singela pia de cozinha. A associação angulosa entre eles torna possível observá-los de um jeito que, no cotidiano, dificilmente ocorreria. E a lâmina de mármore que, na parte superior, tem uma ranhura coberta com pigmento em pó põe em termos quase didáticos a natureza meio violenta da operação que retirou mármore e acrílico de seu repouso e ocultamento.

 

Por outro lado, a aparência mais pop de seus quadros – feitos pela sobreposição de folhas de PVC, ou seja, a partir de procedimentos semelhantes àqueles presentes nas esculturas – adquire aos poucos uma dimensão quase construtiva, à medida que o aspecto industrial e sem sutilezas dos materiais empregados vai sendo revertido pela sobreposição das várias camadas de PVC, que por transparência (ou opacidade) estabelecem superfícies sutis e matizadas, não muito distantes da tradição das velaturas, que foram condição importante para a arte do Renascimento.

 

E aquilo que poderia parecer um paradoxo – a aproximação de duas vertentes estéticas opostas, construtivismo e arte pop – revela acima de tudo a liberdade com que Estela Sokol aborda a história da arte. Porque o que lhe interessa não é a eleição de um ou outro movimento. O que a mobiliza é justamente a compreensão dos limites históricos de cada um deles e o proveito que se pode tirar dessa compreensão.

 

O fato de a artista usar nesses trabalhos o formato tradicional das pinturas poderia, em princípio, atrapalhar sua tentativa de encontrar um novo estatuto para as cores. Mas Estela quis correr esse risco justamente por serem as pinturas o lugar privilegiado para o uso delas e, assim, também poderiam proporcionar uma percepção diferenciada daquilo que ocorre sobre suas superfícies. E, sem dúvidas, as folhas de PVC dificilmente se deixam confundir com áreas preenchidas com tintas. E isso não apenas por seu aspecto material mais pronunciado. Sua consistência – tanto das folhas opacas quanto das translúcidas – as conduz a uma relação com a luz diferente da que ocorre com as superfícies pintadas. As folhas de PVC têm uma textura meio “pontilhada”, meio rugosa, que faz com que a luz que incide sobre elas seja refletida menos ordenadamente, e isso também contribui para a constatação de que estamos diante de algo distinto da tradição pictórica. E, nas superfícies mais translúcidas, a possibilidade de serem atravessadas pela luz dá às cores uma aparência mais doce, pois não possibilita o seu reflexo imediato.

 

No entanto, é a habilidade da artista para obter diferenciações a partir de elementos tão próximos que lhe dará condições de reverter a aparência banal do material empregado. Nesta exposição, as folhas coloridas de PVC adquirem múltiplas visibilidades. E, se não fosse assim, elas facilmente tenderiam a estabelecer um padrão que as pacificaria, conduzindo-as novamente ao mundo das coisas.

 

Em alguns momentos, Estela cria passagens tonais sutilíssimas, próximas de soluções de grandes pintores modernos, como Morandi ou Volpi. Em outros trabalhos, a sobreposição das películas produz um resultado ambíguo, superfícies furta-cores que praticamente impedem que identifiquemos o que vai pelo plano dos quadros. E há ainda os quadros em que as diferenciações de cor se mostram mais acentuadamente – lembrando as telas de Eduardo Sued da década de 1980 –, o que dá às cores uma alegria difícil de encontrar nas mercadorias de uma loja qualquer.

 

Se o embate com o construtivismo permitiu que Estela Sokol pusesse em questão a solidez de objetos rigorosamente formalizados por meio do contato áspero com materiais cotidianos, meio pop, a sutileza formal dos construtivistas possibilitou que ela conquistasse uma presença insuspeitada para materiais até então envolvidos com a criação de objetos banais, dificilmente capazes de enriquecer nossa percepção do mundo. E, se a artista conscientemente se recusou a realizar seus trabalhos por meios mais tradicionais – a pintura, o emprego de materiais compatíveis entre si, a expressividade dos gestos etc. –, seria enganoso ver em suas decisões preconceito ou maneirismo.

 

O desafio que ela se propôs, sem o qual, acredito, não chegaria aos resultados notáveis a que chegou, se mostrou, ao fim, um elemento decisivo de sua poética. Na conjunção de processos e materiais nobres e banais, o observador pode vislumbrar a possibilidade de experimentar o mundo de uma maneira diferente e enriquecedora, a partir de uma reativação das cores que considera seu estatuto atual, rebaixado e raso, sem se conformar com eles. E por isso a artista precisou ser discreta. Em lugar de lastimar a situação em que vivemos, Estela Sokol preferiu encontrar novas possibilidades de experiência. A realidade que percebemos em seus trabalhos carrega as ambiguidades do mundo em que vivemos. A natureza pode ser ameaça. Mas sua domesticação desmedida pode o quê?

 

Rodrigo Naves