"(…) comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos"[1], comeu plantas e frutas, flores e os restos dos corpos que se tornaram só cabeça. Comeu as bordas das imagens que antes seriam paisagem. Comeu riscos sem se preocupar com a continuidade dos traços. Comeu arquiteturas que se adaptaram facilmente a viver sem pedaços. Comeu frases da internet. Comeu as cidades, a mata, os retratos, a natureza que nasce compacta, mas que é comida a cada dia. Devoração tornou-se gesto e consciência autofágicos nos recentes trabalhos de Pedro Varela. Devorar é verbo impositivo para quem resolve se lançar nas atividades da criação.
O ato de rever seus próprios desenhos e pinturas, recortando-as e aproveitando os pedaços, talvez, seja um fato, desde o início da produção de Varela. Portanto, aqui, não se trata da "hipocrisia da saudade", nos termos do Manifesto Antropófago[2], de Oswald de Andrade. Selecionar, seccionar, dar sentido aos papeis em fragmentos, imaginar aparições são procedimentos que vemos em trabalhos do artista ao longo de sua trajetória. Como nas reflexões sobre a antropofagia, sempre nos insurgimos contra a afirmação de que "nunca tivemos gramática, nem coleções de velhos vegetais". Ao contrário, a importação de normas e regras de conduta de outras culturas foi uma adaptação canhestra, malograda, e a resposta mais coerente a tanta referência global seria a frustração "contra todos os importadores da consciência enlatada". Na recente produção de Varela, um interesse renovado e vivamente em diálogo com o presente tornam o lugar da fantasia "enlatada" - condição futurista - e da colagem, mecanismos de suspensão e agilidade do dizer.
Nas pinturas, por outro lado, a tropicalidade sobrevêm, antes de modo discursivo. Vemos um possível diálogo entre Eckhout e Guignard. Frutos, flores, vegetação não ordenada compõem a observação sobre um lugar que não se revela. A insistência em exibir uma natureza aberta, em floração, remonta, de outro modo, ao próprio legado das pinturas de natureza-morta, quase se aproximando de uma leitura erótica. Um orientalismo também pode ser observado, em simulações de paisagem, como nas gravuras Ukiyo-e, em que os intervalos do desenho colocam a representação flutuante. Nas pinturas de Varela, as referências orientais encontram o artista, também pelos gestos que sempre o caracterizaram. E, aqui, há desmanchadas montanhas que nos conduzem, inevitavelmente, a Guignard.
Ainda mantendo certo desejo infantil, Pedro lança-se à acidez das cores, levando a paisagem a lugares impossíveis. Nos desenhos, as cabeças separadas, como na condição dos retratos, autonomizam as histórias, não reconhecemos heróis, mundializamos sinais. Símbolos da reciclagem, punhos serrados em atitude de luta misturam-se a perguntas disparatadas: "Quando foi que tudo isso começou?", "Vai ficar pior". As frases retiradas de contexto, também utilizadas nas colagens, rapidamente ganham sentido, se reconectam, geram circularidade. Talvez, aqui, a criação de "roteiros", hoje, bússolas para a virtualidade, nos reafirme a condição do que Oswald chamou de um "direito sonâmbulo", um outro modo de se tornar eficaz, a partir de visões fragmentadas. Assim são os dias em que nos colocamos diante da pletora de imagens e frases no mundo virtual, mas ainda haverá outros mundos? Fatos se tornam, apenas, correlatos, onde a difusão pelas mídias gera comentários apócrifos. Vemos uma globalização carcomida, ora por gestos de absurda destruição, ora por enredos que só se tornarão legíveis quando legendados. Pressentir, pós-julgar. Estas são as condições do que constitui o que ainda podemos chamar: narrativa.
A cor, na produção de Pedro Varela, é ativada de vários modos. Em ocasiões mais independentes, lançam-se filtros, quase como nos modos de pós-produção, próprios do ambiente infográfico. Nas variadas vegetações, Varela cria certa sequencialidade da cor, separando áreas, adensando degradês. Imagens entram e saem de contexto, tal qual a lógica renovada, agora, mas já presente nas colagens cubistas. E o que atualiza as superposições são frases, palavras de ordem, "aqui na periferia do capitalismo", "lugar estúpido", "greve geral". Assim, para além da fábula e do futurismo, há momentos de "aqui e agora", onde nos situamos, ainda que em condições abstratas, nas agruras do mundo. Percebemos, de outro modo, certa "unificação de todas as revoltas", verso também presente no Manifesto Antropófago.
Antropofagizar, autofagiar-se, rever pinturas antigas, dar tratos ao que ficou esquecido, mal feito, se vale de um pretexto que é olhar e reposicionar sua própria história. Em Autofágico, vemos Pedro Varela se aproximar de um gesto também aos pedaços, o gesto oswaldiano como mote para rever a condição antropofágica modernista, onde a força do fora se tornava renovada na síntese. O que deglutimos? O que devolvemos? Como lidar com a alteridade que está para além de padrões, em ambientes que objetivam ser mais infinitos? A colagem, antes um modo próprio de juntar pedaços, hoje, inventa contextos, fomenta conchavos, e se aproxima da mais sórdida vontade de poder que se lança a partir do falso, do "fake", gerando ampliações inimagináveis. São promessas de mundos interiores que jamais poderão se tornar imagens. Tudo isso, faz o artista questionar a possibilidade de lidar com a alteridade, vontade primeira do modernismo brasileiro.
Se o que nos une é uma devoração, como nos termos de Oswald de Andrade, o que fazer com o que ficou em pedaços? Autofágico nos traz a produção de Pedro Varela que se insurge frente ao inacabado, estranhando o que sempre foi seu.
Marcelo Campos
[2] Andrade, Oswald. Manifesto Antropófago, poema de 1928.