O corpo é eu: diários sobre a distância
Uma escritura do corpo se dá na manufatura do tempo. Em invólucros não para esconder, mas para ser; no desenho do avião ou dentro de si; em vestígios que se dispersam pela casa e no desejo de se atirar ao mundo, Patrícia Araujo manuseia acontecimentos para depois revesti-los do que causa aquilo que está longe. Sua primeira mostra individual apresenta um percurso no qual a imagem é um dispositivo que equaciona e, ao mesmo tempo, se deixa atravessar por arquivos como metáfora de episódios e expressões performáticas, a partir de distintos fazeres: vasculhamento de espaços e memórias, reconstituindo-os à existência, autoconfissões estruturadas como narrativa, dinâmicas em que se coloca em risco.
A poética de Patrícia Araujo direciona-se em busca do devir das ações, da maneira como os fatos são acessados e da faísca que os faz novamente despertar como presente. Seus processos incluem remanejos de tempos. Nessa tradução temporal, a artista tece ficções contornadas por uma realidade que subverte os limites tempo/espaço/sujeito. E de um corpo-morada faz transbordar os lugares por onde passou, o tempo gasto em ser, as dimensões políticas e afetivas que experimentou, evidenciando narrativas e instâncias do agora, de algo ainda acontecendo.
Assim, faz seu corpo lograr outros códigos e imprevisibilidades, deslocando-se entre o possível e o imaginário e enunciando marcas e tramas da presença do que pode precocemente esvair-se. O corpo torna-se dicionário de ações e de condutas impermanentes, cartografia de lugares. Retém rios, fendas, sertões, céus, disfarces, pedras que negam a descrição de paisagem, pois sugerem um ambiente que rompe com o mero e cronológico uso do tempo como representação da percepção do espaço, criando um instável compêndio de experiências a serem compartilhadas.
Como garrafas ao mar, acolhendo e deixando levar-se por fluxos, Patrícia Araujo tem o estado de migração como procedimento e matéria-prima. É nestas experiências de trânsito, de não pouso, de intenso vagar que a artista explora as bordas do registro fotográfico, da imagem que não se quer apenas índice de uma passagem. Este é o seu território de linguagem, de experimentação: o que mostra são esboços de tempos, uma suposta exterioridade e "presenticidade" da fotografia. Há nesse jogo um enunciado de fusão entre aquilo que acorda uma lembrança, objetos e gestos que (re)encenam dramas e o esforço por manter-se num exercício de vigília: retornando, re-escrevendo, dando forma às palavras, à casa, aos vazios, aos deslocamentos, ao próprio corpo mudando sempre de lugar.
Galciani Neves, 2014