Desarmonias
A exposição Dissonâncias Cognitivas, da artista paulistana Vick Garaventa, vem em um momento muito oportuno. Tempos em que olhar o outro pode ser arriscado, em que a construção de uma imagem por vezes pouco conectada com o real é almejada a fórceps, para que uma suposta insignificância pessoal seja sepultada. Um mundo em que cenas de exclusão e intolerância se sucedem _ há exemplos recentes e variados, que certamente logo serão substituídos por outros, como as barcas de imigrantes africanos a naufragar em Lampedusa, os desastres da guerra química na Síria, os inúmeros flagelos humanos África adentro.
Pois bem, Garaventa constroi em sua estreia em galerias um espaço marcado pela justaposição. Fragmentos são colocados lado a lado e, por vezes, têm elos uns com os outros. Contudo, apesar da enumeração, não há um caráter de normatização e classificação exaustiva. Cada pedaço parece buscar a sua individualidade e guarda tais traços particulares. Não há um discurso unificador e totalizante que poderia remeter a práticas como a frenologia _ ciência hoje esquecida mas que teve adeptos fervorosos séculos atrás, a partir da dedução de características morais a partir do formato da cabeça _ e horrores como a eugenia _ empunhada pelos nazistas como base do extermínio de 'degenerados' e 'anormais'.
Há elementos mais utilizados _ o crânio, o esqueleto, os ossos, que evocam relevantes momentos da história da arte, como a vanitas nas naturezas-mortas dos Países Baixos e em outras correntes anteriores. Tendo mais a ver com a finitude e o lidar com a incompletude do que somente com a vaidade, vanitas, em Dissonâncias Cognitivas, guarda elos com um olhar humanista. O teórico francês Jacques Aumont discorre brilhantemente sobre a atualidade do conceito em curso semestral na École des Beaux Arts, em Paris, indo de Schiele e Munch, passando por Bergman, até desembocar em Marte Ataca! (1996), de Tim Burton1.
Uma saudável fluidez de linguagens e formatos domina a exposição. Há desde as pinturas que tornaram Garaventa mais conhecida em seus anos de formação na Faap, porém há espaço para o tridimensional _ com apropriações das mais relevantes, como Jack, a representar ser lendário do interior dos EUA, coletado quando a artista morou lá _ , a gravura e, em especial, o desenho. Os traços e linhas tão habilmente manipulados por Garaventa apontam para uma tendência forte entre jovens artistas mundo afora, o da produção caprichada feita com as próprias mãos, talvez uma resposta que sirva de contraposição a um mundo excessivamente desenvolvido no campo virtual.
Dissonâncias Cognitivas, assim, certamente deixa de lado a bizarrice e a ridicularização que poderiam permear o conjunto de imagens e ideias trabalhadas na produção da artista paulistana, como uma visada apriorística poderia concluir. Antes de tudo, a contemporaneidade da obra de Vick Garaventa quer rever os arquivos, os gabinetes e as classificações, mas entender e investigar a complexidade do humano, também destacando o malfeito, o precário e o efêmero, tão profundamente cotidianos e próximos.
Mario Gioia, abril de 2014
1. Mais informações no site da artista visual Isis Gasparini em: http://isisgasparini.com.br/portfolio/jacques-aumont-na-ecole-de-beaux-arts/