Diante do sol, de cara para ele, a cegueira é inevitável. É ela quem aparece em primeiro plano e, pelo menos de modo parcial, anuncia certa embriaguez, vertigem ou um simples, mas não menos estrondoso, estado de êxtase. A temporária deficiência ocular é resultado do contato de dois organismos vivos e é vista como potência por entender que a perda, a falta e o fracasso nunca chegam sem estar acompanhados de ganhos improváveis ou de possibilidades surpreendentes. O fenômeno ocorrido depois do contato do olho com os raios da estrela solar, quando traduzido como perda - neste caso da visão - encontraria paralelos com a pele, a terra e a água. É que em sua condição ambígua, estando simultaneamente perto e longe, sendo vital, mortal e luz, o sol provoca desejo, mas também repele. E, nos últimos tempos, a necessidade de algum produto que nos proteja de seus raios acentua ainda mais este ponto. Em compensação, é ele quem toma para si a responsabilidade por extinguir a escuridão que aterroriza o homem desde que o mundo é mundo. Daí o fato de a descoberta do fogo abrir para processos socializantes, e o surgimento da eletricidade se tornar, em certo grau, marco para pensar o mundo moderno. Ambos são modos de sanar os momentos de ausência do sol em determinadas partes do globo. E se ele não está presente o tempo todo por aqui é justamente para atenuar a sua ambiguidade: presente em demasia, os seus raios queimam, torrificam e produzem aridez; muito ausente, tudo enfraquece, mingua ou é extinto do que restar do mundo.
Contudo, para onde iria este texto se ousasse tão ingenuamente anunciar que, tanto quanto o calor, a luz é identidade primordial do sol? Não seria melhor reservar essa afirmação contundente para outros canais de comunicação, visto que a redundância pode acabar por reprimir o enunciado que quer tornar claro o fato de que nada e ninguém é estável neste sistema planetário. O que intende pensar em um momento hipotético, provavelmente dotado de uma temporalidade geológica, quando inclusive o sol apagaria a sua luz. Enquanto isso, evitando o devaneio que facilmente De cara pro sol propicia, parece mais cabível pensar no quanto a luz também pode ofuscar e levar ao desvario. E se é bem verdade que nada disso altera de maneira significativa o convívio com essa estrela - já que ela sempre foi ativadora de cegueira, mesmo sendo quem possibilita a visibilidade de coisas e a permanência temporal do sujeito sobre a Terra - teria provavelmente alguma relevância afirmar o quanto a sua luz em demasia faz desatinar. Mas, demasia é outra "obviedade ululante" que busca escapar ao que interessa, porque ela não convence a priori que a intenção primeira deste texto é interrogar os clichês nos quais estão envoltos princípios que regem discursos sobre a busca pelo equilíbrio na vida.
Mas, por trás disso tudo, ouve-se uma voz que não consegue calar enquanto não manda ao inferno esse tanto de clichês que acabaram por destoar a escrita de seu centro de interesse, cegando a mim, que escrevo para buscar nesse exercício alguma proximidade com a série de pinturas de Daré, recém-encomendadas por amigos e familiares. Não obstante, algo precisa ser acordado de imediato: o clichê é uma saída para encarar De cara pro sol, evitando divagar apenas na cegueira que lhe é decorrente. É que engendrar clichês com o valor da divagação, neste caso, toca precisamente em desalinhamentos que abrem para possíveis remontagens do modo como vemos ou nos cegamos diante de tantas situações corriqueiras. E as pinturas não os escondem; elas deliberadamente assumem que é de clichê que querem tratar. Pelo menos até que algo de maior contundência possa ser dito ou percebido, já que a cegueira faz parte do negócio.
Uma chita colada sobre o contorno das figuras retratadas no quadro sugere que alguma brasilidade forçada esteja no ar. É que a luz do sol e a profusão de cores do país permanecem promessas aos crédulos e incrédulos, anunciando gozos inigualáveis durante os muitos dias de verão, riqueza do país "bonito por natureza", repleto de incongruência no modo como convive com o simbólico já presente por aqui antes que se chegasse com tanta soberba descabida e destrutiva. Chita que desvela e desvenda mundos e fundos. Uma popularidade mantida como artifício da profusão e exuberância com a qual são propagadas as imagens do Brasil. Enquanto isso, aqui tudo é - o que data de outros carnavais - a ruína do puxadinho em perpétua reforma. Isso porque o dinheiro para o restauro não sairá, e a ideia de que permanecemos em construção já não engana mais ninguém. Há também a farra, outro modo de traduzir ao sujeito pouco familiarizado com o país uma especificidade tipicamente brasileira: a de dissimular o real espetáculo dessa região dos trópicos, onde a dita estrela brilha com maior intensidade, favorecendo a cegueira sobre o descaso que paira em diferentes instâncias.
Daré mostra obras encomendadas previamente. Nada está à venda, porém tudo é possibilidade para especulações futuras. Cada obra, vendida pelo artista a amigos e familiares, é de propriedade dos retratados. Ele vive no interior. Veio à capital com o intuito de aceitar encomendas da obra De cara pro sol, série de pinturas cujo processo de trabalho pode provocar coceiras e repudiar muitos dos artistas autônomos contemporâneos, que pregam uma postura cuja praticabilidade é mantida nos arquivos de seus ateliês, favorecendo, não raro, um enredamento em sistemas de enriquecimento patrimonial de abastados que egoisticamente guardam seus tesouros longe das vistas do público. O que acaba por tornar o artista um produtor de objetos de luxo com alguma possível validação simbólica, mas, antes disso e, sobretudo, com grandes possibilidades de valoração econômica. Por isso Daré resolveu acrescentar à exposição o seu commodity artista-obra, um estudo especulativo que tem por fim a construção de uma "Câmara Reguladora para o Mercado de Arte". Nesse contexto, o processo é simples: trata-se de equações para a efetivação de encomendas de retratos. A figura retratada respeitará a fórmula de valor para a encomenda de uma pintura feita pelo artista, considerando informações registradas pela "Câmara Reguladora" em seu artigo único, que se estrutura com os seguintes itens: 1) o índice de massa corporal do artista; 2) a cotação diária do grama de ouro; 3) a superfície da tela onde será produzida a pintura e 4) IEF, o "índice especulativo de futuro", com o qual é possível identificar, de acordo com a participação do artista em eventos de diferentes naturezas, um reconhecimento perene e sempre crescente no sistema mercadológico.
Como se o IEF e os outros itens da "Câmara Reguladora" não bastassem para ironizar a condição de todo artista – no que concerne à íntima ou remota relação com circuitos mercadológicos – como visto, em De cara pro sol os retratos são voluntariamente aliados às condições indiligentes do sujeito em relação à paisagem. Mas também interessa pensar as distâncias e proximidades deste com a estrela solar, assim como as implicações nem tanto especulativas sobre a demasia vista como base para um regime relacional comprometedor. E, o fato de os retratos serem produzidos com fotografias em que o retratado olha para o sol por algum instante até ficar minimamente cego, lacrimejar ou entrar em algum estado de gozo, ativa com a experiência em si outras cifras que qualificam o conjunto de obras realizadas e por vir.
Josué Mattos