Zip'Up: Geografia de um lugar contada por ele mesmo: Flavia Mielnik

7 Outubro - 1 Novembro 2014

Ainda é espantoso que o tempo seja algo irrecuperável, o que parece revelar-se como a própria sensação de tempo: na insistência em subtraí-lo do empenho factível do dia a dia ou no preenchimento de lacunas do desconhecido com seus vestígios, como que numa tentativa de romper os receios do experienciável ainda por vir. O homem divide o espaço em regiões, e tais secções estão ao alcance da fala, do ver e das tarefas do corpo. Assim, o horizonte é estável, as coisas tem geometrias, há lugares que acontecem como utilidade - lugar da ação, do habitar, da lógica, do trabalho, das passagens - e que, de tão certos, esses lugares, diante das ferramentas que neles se organizam, quase desaparecem na regularidade de seus usos. 

 

Tempo/espaço são parâmetros (ilusões) para medir as mudanças, os apelos; são modos de afirmar as extensões que convivem no mundo transformadas em hábito: "se ninguém viu (...), se toda a vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido" (trecho do diário de Leon Tolstoi, 1897). A vida desaparece, faz-se em nada e engolidos são os sujeitos, seus objetos, suas mobílias e até o "medo à guerra". Daí, o que se poderia pensar das ilhas de ausência convenientemente situadas entre nós como espaço e como sensação de temporalidade? 

 

Flavia Mielnik formula designações para pensar o espaço. A palavra que nomeia seus argumentos surge como dimensão poética inicial de seu processo: parede escada, parede rua, parede sala que não se conhece, parede galeria. A artista opera nos arredores do tempo e do espaço e em suas filigranas para lhes acrescentar outras percepções. E efetua um deslocamento à linguagem que simultaneamente está inserido em suas dinâmicas mais elementares. Decanta, permuta, observa em deriva.

 

Para se enxergar parede e escada: um desenho de concentração. E então parede escada retornam como cognatos de si próprios, etimologicamente semelhantes, como se seus lugares de partida fossem os mesmos, mas, no percurso, suas geografias se alteram e rompem seus confinamentos. Flavia Mielnik afirma o espaço a partir da construção de vínculos - entre suas conjunturas e entre seus deambuladores, sem hierarquia ou formulações estáveis. Propõe que o espaço siga coexistindo, por assim dizer, em processos de contaminação, não à exceção de tudo.

 

O que significam formulação arquitetural e disposição delimitada? Em certa medida, essas palavras parecem indicar uma intenção calculadora e de premeditação de uma capacidade de desenhar algo necessariamente simples e sem exigência complexa, argumentando um programa para ser e estar em algum lugar projetado. A artista adentra essas assertivas, percebe o instável e, levando-o à linha, à cinta, ao traço, constrói o mundo pelo lado de dentro e pelo lado de fora. 

 

É preciso pontuar: não se trata de representação, nem tampouco de um desenho hermeticamente composto, que se espelha, e assim se apresenta para ser observado como algo que varia sobre ele mesmo. Paredes, brechas, cantos, reentrâncias expandem-se e ao mesmo tempo tracionam-se como espaço, sustentando-se como um todo.

 

Nesse sentido, é possível que o desenho seja algo como uma linha em tensão, tramitando variável para onde ela vai (?), gesticulando uma provável circunscrição. Como esforço de narrativa, como cortes e enlaces dos assuntos do espaço. Assim, forçando as coisas e os espaços, despejando (des)limites, diminuindo e criando distâncias e fricções entre tudo que estava disposto, a artista intercepta o dentro-fora do espaço expositivo. É quando abole polaridades. O que resulta dizer que parede rua é um hic et nunc impermanente de paisagem, arquitetura, plano, linha, rua e sujeito. É aí também que a artista sugere intervalos a se perder, entre ordens de realidades heterogêneas, sobre as quais, no entanto, pode-se montar um espaço, para/em cada um de seus habitantes. 

 

Parece que nesse processo de experimentação de Flavia Mielnik nada disso poderia ser diferente. Há um entendimento lúcido acerca de seus desenhos que acontecem em ruínas, em lugares abandonados, como intervenções na trama urbana da cidade. Eles perduram por lá. Trazê-los apenas como registros fotográficos para o espaço expositivo seria quase forjá-los, colocá-los numa moldura quieta e contida. Sim, mas a documentação existe e é importante. É que a artista a encara menos como dispositivo colado às intervenções e mais como desdobramentos visuais das vivências nos lugares onde se dão. 

 

Ocorre a partir desse esclarecimento um impasse fértil. Flavia Milenik reinventa seu processo e potencializa a discussão acerca do gesto artístico, que, em uma medida generalizada e facilmente revisitável na história da arte, pode ser entendido como uma formulação de pontes entre a vida e o ambiente específico da arte: o artista pinça o fora e traz para o dentro, como arte. 

 

A artista opta pelos atravessamentos e circulações entre essas instâncias. Para tanto, não apenas se valendo dos elementos do espaço expositivo, como uma partitura, mas conjugando-os como elementos ficcionais: pedra, poste, escada. Todos esses componentes juntamente com seus entornos atuam em uma narrativa no espaço e nele mesmo se constituem, fazendo com que o público desloque-se tanto a partir do todo como de seus fragmentos.

 

Parede galeria não é certeza, nem luz branca acontecendo em cubo branco, ainda que uma ou outra estrutura tenha algo de maquinal, característica por vezes perceptível quando uma ligeira defasagem em relação à sua ocupação se dá. Flavia Mielnik intercepta estas estruturas com uma espécie de película de acontecimentos que ali podem se dar, são os vínculos. E é neste "entre-" que a artista rastreia e permeia a nulidade do vazio e planta desvios no olhar de quem por ali caminha, experimenta, vive. 

 

Tempo é matéria, espaço é matéria e expirar estes dois é tradução de matéria. Não é um simples usufruir do espaço. É ocupá-lo, no plural, como prática inventora de microcampos híbridos, adensando ainda mais suas bordas. É a tarefa de colocar a todos em relação dissonante, sob a ordem do risco, situação tempo/espaço em que espaço e sujeito se atraem por suas conversações e entornos.