Sob a história, a memória e o esquecimento.
Sob a memória e o esquecimento, a vida.
Mas escrever a vida é outra história.
Inacabamento.
Com esses versos, o pensador francês Paul Ricoeur termina um de seus principais livros dedicado à história da memória no Ocidente[1]. De maneira bastante sintética, ele consegue entrelaçar os termos em jogo quando discutimos a memória, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto: história, lembrança, esquecimento, vida e narrativa são aspectos que dizem respeito a um processo caracteristicamente humano. Só o homem lembra, só o homem esquece, só o homem pretende registrar a sua memória em forma de narrativa. Trata-se de uma forma de ação que nos distingue dos outros animais, e que está na base daquilo que Aristóteles, por exemplo, associou à atividade artística. Se Arte e História não são a mesma coisa, pode-se dizer que em certo sentido ambas são maneiras humanas de lidar com a consciência da morte e da passagem do tempo desde os tempos mais remotos. Por isso, as duas estabelecem caminhos para constituição da memória (coletiva e privada) que humaniza a vida.
É por isso que em momentos de crise de valores, como ocorre agora, o discurso sobre a importância da memória (e da rememoração) é colocado de novo no centro do debate público. Lembrar do passado (e dos nossos antepassados) é uma condição mais do que necessária para a recondução do futuro. Na verdade, acredito que sem isso não podemos manter uma esperança aberta sobre o que virá. O esquecimento, como parte da história, é aquele do próprio sofrimento pelo qual já passaram os homens. Ele é providencial para que a vida siga, desde que o mesmo não se transforme em apagamento. A narrativa histórica, tanto de um povo quanto de uma vida particular, possibilita que tal esquecimento não seja ocultado.
Se recupero brevemente essas reflexões aqui, é porque acredito que a produção de Camille Kachani provoca, antes de tudo, uma sensibilização da memória. Suas esculturas, como já observaram em textos anteriores Sabrina Moura e Cauê Alves[2], colocam-se no centro do debate contemporâneo sobre as identidades fluidas e a transformação da natureza em cultura e vice-versa. Mas falar nesses termos é em última instância falar de narrativas. Tanto não há algo hoje que possa ser definido como natureza em si (no sentido de que exista sem modificações técnicas), como também algo que possa ser firmemente delimitado como cultura ou identidade autóctones. E talvez seja essa impossibilidade um dilema ao qual o exercício da memória venha responder: cabe à imaginação e à arte, que elaboram o real, recriarem a partir da experiência do que aconteceu o sentido histórico da natureza, da cultura e da identidade no presente. Só talvez assim possamos nos desapegar de definições pré-fixadas que em nada ajudam no entendimento do mundo contemporâneo.
É certo que uma parcela considerável de artistas, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim, voltou-se à "emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais"[3]. Essa retomada foi realizada de diversos modos. Contudo, há nos últimos anos um predomínio da forma documental e representativa que agora parece dar sinais de esgotamento. Pois, na medida em que muitos desses trabalhos têm a pretensão de "denunciar" uma situação real, que teoricamente não faz parte do mundo da arte (e com isso buscariam "conscientizar" o público), observa-se que, com frequência, diversos trabalhos acabam limitados a mesma lógica binária que domina a realidade que se quer criticar. É óbvio que essa abordagem, apesar de ter gerado grandes obras, encontra-se numa encruzilhada.
Tomando como pano de fundo tal panorama, a produção de Kachani ganha um sentido particular. Seus objetos flertam, a todo momento, com a natureza e a cultura ou com o universo dos artefatos e da arte. Entretanto, é a partir do registro do insólito que escolhe trabalhar essas questões, colocando desde o início a incoerência de se pensar por dicotomias. Diante de seus trabalhos, o espectador é convidado a reconhecer uma relação de ambiguidade entre a natureza e a cultura, por exemplo, quando vê folhas (artificiais) saindo de uma tela, ou quando um livro contém folhas e não letras, ou ainda quando uma parede de tijolos (que não é feita de tijolo) é invadida por plantas artificiais. Mais do que uma contraposição estanque entre natureza e cultura, a forma de construção desses objetos sugere que tudo é simultaneamente natureza ecultura, original eartificial, identidade enão identidade. E isso por meio de uma poética que, a meu ver, não deixa de se conectar com a disposição das coisas no mundo dos sonhos, onde os objetos vivem para além da lógica pré-concebida.
E aqui voltamos à problemática da memória: lembrar, tal como acontece quando estamos sonhando, não quer dizer reconstruir uma sequência de acontecimentos, ou sensações, mediante a lógica binária excludente, pretensamente objetiva, do mundo da vigília. Na verdade, é a partir da significação do excedente, daquilo que não se encaixou no fluxo da consciência racional, que o esquecido pode ressurgir, os contrários conviverem ou as dicotomias desaparecerem e, desta maneira, os limites da realidade serem recolocados por meio da composição de uma narrativa expandida. Neste sentido, diria que os objetos presentes nesta exposição são, antes de tudo, um convite à experiência alargada daquilo que apressadamente poderíamos classificar como uma identidade única, seja ela individual, coletiva ou da própria história. Logo, uma arte cada vez mais necessária diante do fechamento de nossa situação contemporânea tão afeita a radicalismos de toda ordem.
Taisa Palhares
[1] Trata-se de A memória, a história, o esquecimento (Campinas: Editora da Unicamp, 2007).
[2] Respectivamente "Identidade como recusa" e "Natural e manual".
[3] Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia.Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000, p.9.