DOIS
Quanto nos deixamos atravessar e tocar pelos acontecimentos à nossa volta? Em que medida conseguimos festejar a nossa própria realidade? Felipe Morozini parece responder a essas questões por meio de seu profundo afeto por São Paulo e seus fenômenos. Suas imagens rompem com a banalidade e a vulgarização do cotidiano e revelam a majestosidade inerente às coisas e às pessoas. Majestosidade que nos escapa devido ao nosso modo frenético, automático e cego. Capaz de nos desprender da nossa própria cidade – essa fonte que alimenta, inspira e nos faz acontecer como indivíduos.
Ele observa o extraordinário na dança de dois corpos nus sob o sol escaldante de uma segunda-feira qualquer. Como se em sua simplicidade e despojamento pudessem enfrentar com ternura o cenário cinza e estéril que os rodeia. Um cenário duro que foi dado a eles, mas que por meio do movimento de seus corpos reinventa o que lhes foi dado. É esse lugar, essa beira no caos urbano onde se cria (e não se gasta ou se perde) o próprio tempo, que a lente de Morozini parece querer emoldurar. Ao lançar um farol sobre uma arquitetura aparentemente triste, ele parece abraçá-la e embalá-la, como se pudesse dizer que, sim, ela é importante. Edifícios que julgamos maltratados, malplanejados, desqualificados e comuns, mas que estão ali, servindo de templo para alguém e que, como outras construções da cidade, também desejam contar suas histórias. E sabemos que histórias só existem se contadas, basta que estejamos dispostos a ouvi-las.
E mesmo o incêndio de um antigo mobiliário recebe seu instante de silêncio. O artista compartilha o registro dessa pequena morte, que como muitas outras que ocorrem a todo instante ao nosso redor, nunca mereceram nossa atenção porque nem sequer percebíamos que nossos corações batiam. "Não há ser neste universo que não tenha ritmo próprio, que não tenha vibração própria, que não crie tempo, que não crie espaço, que não crie corpo", já afirmou o filósofo Luiz Fuganti.
Cada um desses eventos ordinários ganham luz própria e parecem nos convidar para algo. Se vagávamos perdidos nessa fumaça encardida e desvairada, somos agora tomados pelo encantamento de Felipe Morozini, que busca dissipar essa fumaça para além das imagens. O artista nos encoraja a recriar a relação com nosso entorno para podermos também enxergar o outro com afeto. E se antes éramos nada, agora somos dois.
Thaís Gouvêia