A ressignificação da imagem
A colagem é cada vez mais presente na cultura contemporânea. Somos a sociedade da imagem. A Pop Art inglesa, que nasceu na segunda metade dos anos de 1950, com a famosa colagem de Richard Hamilton composta por recortes de anúncios de revistas, se aproximava da comunicação de massa e se apropriava de seus signos. Entretanto, o século XXI é ainda mais povoado por imagens tanto impressas como eletrônicas. A convivência social se tornou completamente mediada por imagens produzidas e descartadas numa velocidade crescente.
No trabalho de Zé Vicente não há uma distinção nítida entre a produção e o consumo, ou entre a apropriação e a invenção. A operação fundamental do artista é eleger uma imagem pré-existente e em seguida descobrir uma nova possibilidade de inseri-la no cotidiano. A essência dessas obras é a relação que as imagens passam a ter com a cidade. A matéria prima dos trabalhos não é um elemento tradicional bruto como a tela ou o mármore, mas fotografias impressas que habitam o mercado editorial retiradas de seu contexto.
Zé Vicente, ao apropriar-se de recortes de jornais, revistas e impressos em geral, propõe uma circulação diferente para as figuras que vem colecionando. Suas imagens são resinificadas no contato direto entre impressos bidimensionais e a experiência urbana. O artista sai pelas ruas com sua pasta de recortes com figuras que teriam como destino inevitável a obsolescência. Andar e vaguear pela cidade é uma prática que Zé Vicente cultiva para redescobrir frestas, intervalos escondidos ou esquecidos. Esses lugares de passagem que recebem colagens e interferências provisórias passam a ser os protagonistas anônimos de suas fotografias. A perambulação e a deriva são estratégias do artista para se encontrar com os acidentes do território. É também o meio necessário para que aconteça um encontro significativo entre a experiência corporal e o aglomerado dinâmico e complexo que é a cidade.
Sem abandonar o bom humor, o artista joga com diferenças de escala a ponto de perdermos a referencia de grandeza dos objetos, seja agigantando ou diminuindo os tamanho das imagens em relação ao espaço urbano. Na série Pela rua com recortes ele faz uma espécie de sampler, tal como um DJ que reutiliza fragmentos de música em outro contexto. Zé Vicente ainda refotografa seus recortes em posições que muitas vezes não correspondem às coordenadas de orientação espacial da imagem original. O que era vertical se torna horizontal e vice-versa. Em novas composições, as imagens que provavelmente seriam descartadas ganham uma sobrevida, ou talvez se tornem perenes.
Em um vídeo, o artista registra um de seus percursos pelas barulhentas vias de São Paulo e o modo como vai construindo as composições a partir do inesperado, da surpresa e do improviso. O frescor e a espontaneidade de produzir sentidos pela justaposição de figuras e fundos contrastantes fazem com que os recortes e a cidade se fundam em estranhas unidades. Ralos se tornam piscinas naturais em que banhistas se deleitam, cacos de telhas e tijolos escondem e revelam um rosto feminino, um pequeno canteiro vira um gramado onde uma mulher toma sol, e cabos de vassouras se transformam em grades de uma prisão. Esses são alguns exemplos dos absurdos promovidos pelas colagens e assemblages de Zé Vicente. Alguns de seus trabalhos possuem uma ambição tridimensional, como se as colagens não se contentassem em ser planas e quisessem se tornar objetos, fragmentos deslocados do seu contexto. As próprias fotografias, ampliadas e exibidas no espaço da galeria, também não abandonam certa aparência suja do mundo da rua.
O artista traz um pouco da dispersão do espaço externo para o cubo branco da galeria ao reutilizar materiais da construção civil. Muitas de suas fotografias já foram inseridas nas redes sociais, mas agora trata-se de uma aproximação com o espaço expositivo em que as imagens ganham uma presença física. Mais do que isso, a própria galeria, imersa na cidade, se torna suporte para um recorte agigantando em que sua fachada é tratada como outdoor.
Mas a presente mostra, diferente dos ícones pop, não anunciam produtos ou exploram signos do consumo, tampouco são descartáveis. O que esses trabalhos fazem é nos proporcionar uma experiência mais indeterminada e surreal com a cidade e o nosso entorno. Zé Vicente parte do caos e da profusão de imagens que nos bombardeiam diariamente para propor uma outra possibilidade de vermos o mundo, uma ordem em que ficção e realidade são inseparáveis.
Cauê Alves