Marco Tulio Resende — Matéria Que Fala

Na obra de Marco Tulio Resende, a matéria assume protagonismo. Elementos simples como tijolos, concreto e argila deixam de ser apenas materiais brutos e se transformam em veículos de uma narrativa poética. Resende explora a capacidade da matéria de transcender sua função, utilizando-a como um meio de expressão que vai além de sua fisicalidade.

O artista transforma esses materiais básicos em mediadores de histórias sobre tempo, memória e identidade. Aqui, a matéria "fala", como se cada peça fosse dotada de voz própria, construindo uma narrativa sensível que eleva o banal ao poético, e o cotidiano à mitologia pessoal.

O termo “ex-voto”, do latim ex-voto suscepto, significa “pela promessa realizada”, e as obras de Marco Tulio reinterpretam essa ideia ao incorporar elementos formais e conceituais do universo religioso. Mas a série Ex-VOTOS (1997) não se limita à sua origem religiosa, ao contrário, transita por questões mais amplas do imaginário votivo.

Os trabalhos evidenciam uma ligação profunda com a dor e o sofrimento humano, utilizando formas que sugerem um "excesso de sentido", carregadas de emoção. Resende explora a relação entre suas obras e os votos de fé, criando peças que evocam o peso da história e das experiências vividas, dando nova vida a objetos que se tornam testemunhos do tempo.

Os trabalhos da série Recortes de Parede utilizam tinta de terra, uma técnica sustentável que mescla solos de diferentes tonalidades. A produção das tintas combina terra, água, cola e, opcionalmente, pigmentos, resultando em uma paleta de cores que varia conforme a textura e a composição do solo.

As obras em marrom, vermelho e amarelo refletem a presença de óxido de ferro, enquanto as mais escuras são formadas por misturas orgânicas. Os recortes de parede de Marco Tulio Resende funcionam como intervenções no espaço expositivo, onde ele utiliza materiais descartados e elementos gráficos recolhidos para criar uma nova narrativa visual. Essa prática reflete sua obsessão em capturar o efêmero e o fragmentário, ao mesmo tempo em que organiza e reconfigura o espaço, estabelecendo um diálogo entre a obra, o ambiente e o espectador.

As obras da série CABEÇAS, originais de 2013, remetem a uma parte da história de Ouro Preto e às oralidades da população do Bairro das Cabeças. Localizado na entrada da cidade no século XVIII, o bairro era marcado pela exibição de cabeças cortadas como forma de intimidar os habitantes. O artista utiliza terra de diversos municípios mineiros, processada em argila e queimada em um forno NOBORIGAMA a temperaturas de até 1.280°C por 72 horas.

Essa técnica, conhecida como BIZEN, resulta em peças com texturas variadas, criadas através da interação das cinzas com a cerâmica, revelando padrões fascinantes e uma conexão ritualística com o fogo. Além de retratar a figura humana, essas esculturas funcionam como máscaras que revelam o lado oculto da alma. Carregadas de simbolismo, as obras remetem a tradições religiosas e culturais, como ex-votos e esculturas africanas. A obra explora uma dialética entre forma e sensibilidade, unindo o mítico e o humano, e aborda questões de violência e desumanização. As cabeças apresentam deformações que evocam o sofrimento humano e refletem a fragilidade da identidade em um mundo repleto de ameaças. Desta forma, a escultura se torna um comentário social sobre a condição humana.

Na série “Ecce Homo (Tijolos)”, Marco Tulio Resende utiliza a técnica do barreado, que envolve a diluição de solo argiloso em água. O resultado é uma cerâmica rica em matizes e texturas, destacando a presença de óxido de ferro. As obras desta série também são queimadas no forno NOBORIGAMA, seguindo o processo BIZEN, onde a cerâmica é submetida a um longo processo de queima, criando padrões que se relacionam com a trajetória do fogo.

Nessa série de esculturas, o artista investiga a materialidade e a forma, utilizando tijolos como elemento central. Esses objetos são transformados em peças artísticas que falam sobre construção, destruição e a fragilidade das estruturas humanas e sociais. As esculturas abordam vida, morte e renascimento, explorando as tensões entre opostos, como a presença e a ausência, e evocando um sentimento de continuidade e resiliência. A obra de Resende provoca uma reflexão sobre o cotidiano, a memória e a busca pela permanência em meio à transitoriedade da existência.

Os Desenhos Diários de Marco Tulio são uma expressão contínua de suas vivências e afetos, refletindo um fluxo de criar, esquecer e reencontrar. Cada desenho documenta uma experiência específica, funcionando como um alfabeto visual que evoca memórias e sensações, permitindo múltiplas leituras e interpretações.

Esses desenhos se configuram como um diário visual, onde o artista narra suas interações com o mundo por meio de uma linguagem pictórica descrita como "ágrapha" (sem palavras). Com manchas e aguadas, ele captura a complexidade da realidade brasileira, abordando temas como tragédias e contradições sociais, especialmente em relação à poluição e destruição ambiental.

As obras de Marco Tulio Resende são expressões poéticas que fazem refletir sobre o que significa ser humano em um mundo de contradições. Através do diálogo entre a matéria e a narrativa, Resende transforma elementos cotidianos em veículos de reflexão sobre identidade, memória e as complexidades da condição humana.

Cada série de trabalhos — seja nas CABEÇAS, que revelam o sofrimento e a espiritualidade do ser humano, nos TIJOLOS, que falam sobre construção e destruição, ou nos DESENHOS DIÁRIOS, que capturam o efêmero da vida — nos convida a questionar a fragilidade das histórias que nos cercam.

Resende nos oferece uma oportunidade de encontrar beleza e significado em materiais simples, levando-nos a um espaço onde o poético se entrelaça com o cotidiano. Assim, a arte sensível de Marco Tulio Resende nos convida a ouvir a "matéria que fala", lembrando que, no âmago da nossa existência, reside a potência de transformar o banal em extraordinário.