
Em homenagem ao Dia Mundial do Livro, celebrado em 23 de abril, convidamos quatro artistas representados pela Zipper Galeria para compartilharem títulos que reverberam em seus trabalhos e nos ajudam a compreender os caminhos por onde perpassam seus processos criativos.
Se você se interessa por essas conexões entre artes e literatura, vale conferir edições anteriores, onde outros artistas da galeria já compartilharam suas leituras favoritas.
Conteúdo do artigo:
Ivan Grilo – Esperando Godot, de Samuel Beckett
Escrito por Samuel Beckett no final dos anos 1940 e publicado em 1952, “Esperando Godot” é um clássico do teatro do absurdo. Nele, acompanhamos Vladimir e Estragon enquanto esperam por um tal Godot, figura que nunca chega, mas cuja ausência move a trama e seus silêncios. Entre uma repetição de gestos e diálogos, em cenas circulares, o livro se debruça sobre o tédio, a esperança e a busca por sentido na existência humana.
A leitura inspirou a criação da obra “Te conto nos olhos” (2025) de Ivan Grilo, artista conhecido por explorar temas como memória, tempo, poesia e afetividade. Segundo ele, no livro “há um humor seco, uma lógica torta onde o tempo escorrega”. Assim como a história de Beckett, na instalação de Grilo, é capturado o instante anterior ao acontecimento, aquele hiato que carrega as expectativas sobre as potencialidades. “Foi nesse intervalo, entre o absurdo e a ternura, que imaginei a véspera como matéria. Na instalação (e no texto que nasce dela), a espera se aquece: a luz rompe a névoa, a pedra se transforma e, onde nada parecia acontecer, algo se inicia. Como se o amor pudesse ser contado no instante antes da erupção, num registro sismográfico, que é pra onde minha pesquisa se encaminha agora”, conta o artista.
Rodrigo Braga – Metamorfoses, de Emanuele Coccia
Em “Metamorfoses”, o filósofo italiano Emanuele Coccia reflete sobre a transformação como princípio fundamental da vida. Segundo o autor, “todo ser passa pela metamorfose”, uma experiência que define as forças e os limites da existência. Desde Darwin, compreendemos que qualquer forma de vida – incluindo o ser humano – é apenas a metamorfose de outra, muitas vezes já desaparecida. No ato metamórfico, a mudança de si e do mundo coincidem, atravessando identidades e universos sem jamais passar por eles de forma passiva.
Rodrigo Braga é um artista cuja obra transita entre o humano e o não-humano, explorando os limites e intersecções do corpo, da paisagem e da identidade. Para ele, Coccia “parece um exímio intérprete de sabedorias das culturas ancestrais de todo o mundo para conceitos que envolvem a ciência pós-moderna e a filosofia ocidental. É como reafirmar, por meio de seus textos direcionados a um público urbano de sociedades capitalistas e desconectadas do âmago da natureza, o que, em suas culturas orais, os ameríndios sempre disseram e transmitiram ao longo de inúmeras gerações”.
Em 2022, em sua exposição individual “Allégories Périssables”, na Galerie Salon H, em Paris, Braga dialogou diretamente com o filósofo, apresentando obras que abordavam temas como transformação, impermanência e a interconexão entre os seres, em paralelo com o livro.
Willian Santos – O olho e o espírito, de Maurice Merleau-Ponty
Publicado postumamente em 1960, “O olho e o espírito” é um ensaio em que Maurice Merleau-Ponty se debruça sobre o ato de ver a partir de uma fenomenologia do corpo. Para o filósofo francês, a visão, para além de sua função objetiva, é uma forma de participação do sujeito no mundo. Nessa lógica, a pintura não descreve o mundo, mas participa dele.
Essa é também a maneira como Willian Santos compreende a sua prática artística. Em suas obras, a cor, a luz e os gestos são reveladores de uma sensibilidade que se constrói no tempo da contemplação. Apesar de lançar mão do figurativismo, ele se interessa por algo além da representação. Santos resgata resíduos de criações anteriores e pauta temáticas entre o mítico, o histórico e o natural. Assim como o filósofo rompe com a separação entre sujeito e objeto, o artista também dissolve a fronteira entre o mundo e o olhar, tratando a pintura como uma forma de existir no mundo.
Marco Tulio Resende – As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino
Publicado em 1972, “As Cidades Invisíveis” é uma obra-prima do escritor italiano Italo Calvino. No livro, o viajante Marco Polo narra ao imperador Kublai Khan as descrições de cidades que talvez existam apenas na imaginação. São mais de cinquenta cidades, todas com nomes femininos, que, embora nunca nomeiem diretamente o lugar de origem do narrador, falam de experiências humanas universais: o desejo, a memória, a morte e o tempo. Calvino, então, faz de cada cidade uma cartografia do inconsciente e dos afetos.
É também assim que Marco Tulio Resende constrói sua obra. “Em meu trabalho, uso a memória como ponto central da poética artística”, afirma o artista. Nascido em Minas Gerais, o artista transforma materiais como argila, madeira e pigmentos naturais em relicários de memórias e histórias esquecidas. Compreendendo que a matéria também carrega histórias e afetos, Resende cruza realidade e ficção.