
Durante muito tempo, os povos antigos não viam a Terra como um corpo celeste – ela era o centro do universo conhecido, o chão sob os pés, o lugar da vida. Daí o nome do nosso planeta: diferente de outros do Sistema Solar, que batizamos posteriormente em homenagem a deuses da mitologia romana (como Marte, Vênus, Júpiter), o nome do nosso significa literalmente “solo”, “chão” ou “terra firme”. A escolha do nome antecedeu a compreensão da astronomia que temos hoje, portanto não surgiu como a denominação de um corpo celeste no Espaço, mas como forma de se referir ao mundo conhecido e habitado pelos humanos.
Na língua portuguesa, assim como nessa concepção originária, não há distinção no termo que se refere ao solo em que pisamos ou ao planeta em que vivemos – ambos são “Terra”. O Dia da Terra, celebrado em 22 de abril, foi criado em 1970 a partir da necessidade de convocar consciência e responsabilidade diante das urgências ambientais que ameaçam esse corpo vivo. A data nos lembra da preciosidade desse acaso cósmico que chamamos de lar e da nossa responsabilidade diante dele.
Para a reflexão desta data, apresentamos os trabalhos de Fábio Baroli, artista representado pela Zipper Galeria, que pesquisa o Brasil interiorano e volta seus olhos para a terra – seja no seu sentido de matéria ou de ambiente habitável – e reconhece nela uma extensão do próprio corpo e existência. Em meio a urgente crise climática e esgotamento dos recursos naturais, as obras de Baroli nos lembram que a relação entre o humano e o planeta não precisa ser predatória: pode ser feita de forma harmoniosa, com respeito, escuta e cuidado.
Conteúdo do artigo:
Fábio Baroli, Pá, 2023
Na pintura a óleo, intitulada “Pá”, Baroli dá protagonismo àquilo que costuma permanecer à margem da cena: a ferramenta que intermedia o trabalho humano braçal com o solo. Em uma composição verticalizada e seguindo as proporções reais do objeto, a figuração naturalista da pá se ergue diante do espectador com imponência, se aproximando de um caráter totêmico.
Deslocado de sua função operária e agrícola, a pá é instrumento que nos lembra o gesto de escavar, mas também de semear. É uma ferramenta ambígua: está presente desde a promessa de um broto de vida até a despedida – pode abrir a terra para o cultivo, mas também ser utilizada para enterrar e selar o fim de um ciclo.
Na simplicidade do objeto, o artista nos aproxima dos ensinamentos que a relação com a terra nos passa sobre vida e morte.
Fábio Baroli, Chaga, 2023
Inspirada em um mito popular de Uberaba, Terra do Zebu, em Minas Gerais, a instalação “Chaga” parte de uma crença local para pautar uma urgência de âmbito global. Conta-se que, quando nada prospera, há um crânio bovino enterrado sob o chão. Fábio Baroli faz dessa crença uma alusão ao colapso ambiental que nos atravessa: a terra ferida, infértil, como um organismo exausto.
O boi, elemento recorrente na iconografia do artista e símbolo ambíguo da colonização rural, é figura da força bruta que desbrava a terra, mas também da submissão – animal que carrega, é marcado, abatido e explorado pelas indústrias humanas. A combinação entre o metal e a terra contrasta permanência e decomposição, representadas pela presença fóssil e do solo – matéria que historicamente simboliza a fertilidade. As largas dimensões da instalação no espaço convida o corpo do espectador a se mover ao redor do objeto como quem circula um túmulo.
Fábio Baroli, Declínio #12, 2025
A série “Declínio” é resultado de uma extensa pesquisa que o artista faz há mais de doze meses percorrendo regiões do Cerrado mineiro devastadas por queimadas e estiagens. Nela, Baroli nos apresenta paisagens de pôr-do-sol, que, à primeira vista, soam como serenas e contemplativas. Mas o título – “Declínio” – contrapõe outra camada: faz referência ao natural movimento do sol que desce no horizonte, mas também carrega o sentido de “decadência”.
Os tons solares exageradamente avermelhados são um sintoma de uma atmosfera poluída. A cor negra da pintura toma corpo com uma amostra de terra misturada ao carvão, retirada dos próprios locais retratados e inserida na parte inferior da composição. Com o solo incorporado à moldura, o artista funde o pictórico e a matéria, e evidencia a degradação do ambiente que inspira a obra. Ao emoldurá-los, como quem protege algo sagrado, ele chama atenção para aqueles punhados de chão que tantas vezes passam despercebidos sob os pés.
A sobreposição de significados fricciona a beleza da imagem. Já não vemos mais ali o espetáculo da natureza, mas o presságio de um fim. Baroli faz da luz que lentamente se apaga uma analogia para o desgaste de um território e de um tempo.