Velázquez, profeta da antiga internet

Setembro 8, 2021
Fernando Velázquez 1

No sábado, fui à exposição do Fernando Velázquez na Zipper. Perguntei: “se o artista faz o algoritmo, ele desenha, coloca todas as informações dentro dele, daí escolhe algo novo, modela e imprime em 3D, é ele mesmo que é o artista?,” pra minha amiga, que havia trabalhado na produção da exposição. Me disse, sem pestanejar, “claro.”

 

Me deparo, então, com uma das novas máscaras africanas do Velázquez. Três olhos, uma coroa, talvez cocar, um oráculo quase grego. A máscara prende minha atenção. Sinto que há tradição ali. Ou quase. É difícil dizer. Há algo humano ali. Há algo alienígena, algo robótico, quase ciborgue. Queria mesmo era perguntar pra máscara: “posso vestir?”

 

Com um outro amigo, me vi conversando bastante depois da exposição sobre o Exterminador do Futuro. Não é uma referência que eu tenha, mas ele cresceu assistindo, tem até estilo pra jaqueta. São tipos masculinos, afinal, como eram os das estátuas gregas que o Velázquez selecionou para colocar dentro do algoritmo, antes de imprimir estátuas novas, baseadas no que o algoritmo entendeu por estátua grega. O que será a essência do que se entende por uma estátua grega? 

 

A exposição é uma brincadeira, na verdade, da maneira mais séria. É uma brincadeira com o algoritmo, é uma reputrefação lúdica do passado. Na qual escolhe então você, você mesmo, se vai apagar ou deixar amanhecer. Quando o Velázquez traz à tona essas novas imagens, quando ele programa, colhe, seleciona, filtra e devolve ao programa; quando ele monta, desenha, traz o plástico o mármore a madeira, ele esculpe de novo a estátua grega. Mas ele também atropela todo o processo antigo. É uma solução sofisticada, dentro da lógica colonial. E a certa?

 

Então você, você mesma(o)! se depara com o precipício, prestes a acatar a ideia. Com a estátua na mão, você questiona, por quê? Por que peguei a estátua? Queria eu o mistério, acho. É um anseio estranho, hoje em dia, quando sabemos tanto dos bastidores. Mas deveria haver mais mistério. Porque, quando se desconhece mais, se pergunta mais. 

 

Aqui, então, entra a parte mais nefária da exposição do Velázquez: a pergunta que você tiver, faça à maquina! Faça uma pergunta pro algoritmo. O algoritmo te responde. Não, verdade. Tem um link pro Telegram no meio da exposição! Só que a resposta que você está recebendo, foi maestrada, pelo Velázquez. Como foram as estátuas gregas. Ele tá te respondendo.

 

Me faz lembrar de um outro Velázquez. Espanhol, pintor, do século XVII. “As Meninas” de Velázquez, é uma obra que quase todo mundo conhece: Meninas da corte posam para o pintor, pouca atenção se dá à formalidade, algumas olham para fora do quadro, outras, distraídas, se preocupam com o momento. Mas você sente algo estranho ali. Primeiro, que a pintura mais lembra uma foto, tirada em um momento quase lúdico, pouco trabalhado, pouco comum para a época. E em um segundo plano, você percebe que o pintor se pôs dentro da pintura, olhando diretamente para fora do quadro. Olhando pra você? Não, ele olha no espelho. É um jogo de perspectivas e ele captura o momento como uma câmera. Registra memória. Cria…

 

Velázquez

 

Você já ouviu falar do jogo de Búzios? Mais ou menos, né? Eu, também. Até tive que pesquisar depois pra ver se sabia do que eu tava falando. E, sinceramente, mais ou menos. Acho que a gente tem imagens demais guardados em nossa cabeça, várias preconceituosas, e com tantas imagens assim, quem consegue se lembrar do jogo de Búzios? Ninguém, até porque não é tanto um jogo quanto uma forma de comunicação. É um momento no qual você se vê perguntando, falando, interpretando. Às vezes, uma outra pessoa analisa com você; vocês conversam com o passado, com a nossa cultura. Porque, naquilo que a gente chama de jogo, tem milhares de histórias investidas, milhares de vidas, as nossas. Quiçá mais de quinhentas mil. 

 

A exposição nos trouxe de volta. Os bares, os cinemas. Os parques estão mais cheios. O gramado, o jogo de futebol. Mas imagina não poder jogar com quem tá na sua frente. Imagina ter que jogar com o computador, o algoritmo do Velázquez, a câmera do outro. São jogos com a nossa memória: o que eles guardam e a gente, não. 

 

O Velázquez escolheu guardar esculturas, máscaras, a arte, a tragédia grega, o passado. Ele colocou tudo isso dentro de um computador, fez um algoritmo, criou novas imagens. Velázquez fez memória. E sacrificou memória. Essa é a dor do projeto decolonial. Porque, claro, que há dor. É sentir esse passado diferente. E foi diferente e sempre será diferente. Então, há dor, e há muita dor nas peças. As máscaras, por exemplo, a segunda me lembra um inseto, um besouro com um olho nas costas, uma bactéria, uma barata. Mas algo falta, tem ainda aquele olho no meio, tem algo diferente. Nas estátuas, então, uma delas ainda se mostrava em pé, esguia, flamejante; estava viva, recuperando uma tradição. Mas na outra, mas na outra você sente uma dor profunda, como se um pedaço de uma nuvem tivesse sido roubado. E começou um temporal. E a dor dessa chuva machucada existe nessa nuvem, nesse pedaço, nessa estátua. E você vê ela lá, sente a dor dela. E se pergunta, por que dói tanto?

 

Fernando Velázquez 2

 

Pro algoritmo, você pergunta pro algoritmo. 

Lembra do que eu falei? Sobre a parte mais nefária da exposição? Quando você se pergunta, você pergunta pro algoritmo! Abre seu celular e pergunta. 

 

E agora? Não sei mais sair dessa exposição.

Velázquez sabe. Como?

O algoritmo segue as bases do jogo de Búzios.

Lembra as conchinhas? Você me fez uma pergunta, conversou um pouco com o Oráculo, e ela soltou as conchas. Elas caem, pra cima pra baixo, e ela lê: Lê conhecimento. Quando a cultura é oral, a linguagem escrita funciona diferente. Mas ela tá lá. Pra cima pra baixo, aberto fechado. Zero e um, 1 0. 

 

É a mesma tecnologia. Ela te safa agora, como já te safou no passado. Afinal, quem dá sentido ao algoritmo somos nós.


A exposição “Rituais da complexidade,” de Fernando Velázquez, fica na Zipper até dia 25/09. Quer saber mais sobre as nossas exposições e obras de outros artistas? Então, assine a nossa newsletter e siga-nos no Instagram!